segunda-feira, 28 de novembro de 2011

FRASE DA SEMANA

“O FUTURO TEM MUITOS NOMES. PARA OS INCAPAZES O INALCANSÁVEL, PARA OS MEDROSOS O DESCONHECIDO, PARA OS VALENTES A OPORTUNIDADE.”

Victor Hugo

Falta pacificar Brasília

Francisco Bosco - 17/11/2011



Não quero diminuir a importância da ocupação da Rocinha pela polícia, tampouco a política das UPPs em geral. Comemoro ambas. Mas devo começar essa coluna com uma frase estranha, e entretanto necessária para encaminhar o pensamento estrutural que deve orientar a sociedade brasileira nesse momento: embora legal, a prisão de Nem, num sentido profundo, é injusta. Um imenso contingente de jovens, quase todos pretos (ou pretos simbólicos, como Nem), compete em condições radicalmente desiguais com jovens de classe média ou ricos; são humilhados pela polícia; têm sua cidadania esvaziada pela precariedade de serviços públicos fundamentais (saúde, saneamento etc); são quase sempre invisibilizados pelo olhar do outro; não são reconhecidos, em suma, pelo Estado, nem pela sociedade. Por que então deveriam respeitar um pacto social que não os respeita? Impelidos à criminalidade, são presos ou mortos pela polícia. Isso é justo?

Eis a diferença entre os modos como a direita e a esquerda compreendem o problema da criminalidade. Para a direta, o crime é sobretudo uma decisão da ordem da escolha moral individual. Basta ver a capa da revista “Veja” dessa semana: um personagem de novela, uma mulher de meia-idade, com macacão sujo e uma ferramenta na mão, olhar sofrido e firme, encara quem a olha. É o elogio da integridade moral individual nos trabalhadores de classes sociais inferiores. Mas o que, no fundo, essa capa diz é o seguinte: há pessoas que, mesmo desfavorecidas socialmente na largada, recusam-se a quebrar as regras do jogo e trabalham obstinadamente para melhorar de vida. Logo, os criminosos são esses seres abjetos a quem falta essa grandeza moral. Conclusão: a culpa é deles mesmos, que portanto devem ser punidos com rigor pela sociedade. É fácil pensar assim, responsabilizando o outro, e não a sociedade em seu funcionamento geral (o que inclui cada um de nós, sendo essa a visão da esquerda).

Alguns dias antes de ser preso, Nem conversou com a jornalista Ruth de Aquino, da revista “Época”. A fala de Nem não traz nenhum dado inédito ou interpretação nova do problema; além disso, é possível que, nela, Nem esteja querendo influenciar a opinião pública a seu favor. Mas mesmo que seja forjada, é autêntica; mesmo que seja mentirosa, é verdadeira. Há duas linhas que ela estabelece. Numa delas, Nem se apresenta como uma versão do “bandido justo”, que cuida da comunidade (“Mando para a casa de recuperação na Cidade de Deus garotas prostitutas, meninos viciados”) e separa, no interior do crime, as dimensões do pragmático e da crueldade, rechaçando essa ultima (“Nada de atirar em policial que entra na favela. São todos pais de família, vêm para cá mandados”). Na outra linha, ele se revela um traficante lúcido, crítico da estrutura social e a favor da política de segurança do Estado: “A UPP é um projeto excelente”. E ainda: “Meu ídolo é o Lula. Ele foi quem combateu o crime com mais sucesso. Por causa do PAC da Rocinha. Cinquenta dos meus homens saíram do trágico para trabalhar nas obras. Sabe quantas voltaram pra o crime? Nenhum. Porque viram que tinham trabalho e futuro na construção civil”.

Dois pontos fundamentais foram tocados aí. Conta-se que Nem seria, na verdade, um bandido sanguinário, desses que ri enquanto toca fogo em alguém nos pavorosos “microondas” das favelas. Não sei se é verdade, mas o argumento é usado para defender que não se deve ter pena ao julgar, sentenciar, ou mesmo matar sem julgamento um criminoso como ele. A versão do bom bandido, apresentada por ele, serviria para amenizar essa visão. Seja como for, a versão “bandido sanguinário” é, justamente, aquela em que se revela melhor a estrutura social perversa de que o crime deriva: como esperar que um sujeito humilhado, desprezado, agredido, possa ser racional e calculista no crime? O seu ódio é a resposta simétrica à humilhação sofrida. Quem pode ser racional e calculista no crime são os sujeitos para quem o crime não resulta de violências sofridas no mais íntimo de sua identidade, mas aqueles para quem o crime é uma escolha possível entre outras, ou seja: banqueiros ladrões, políticos corruptos etc.

Quando Nem diz que perdeu seus homens para o PAC, a implicação é a mesma: se a sociedade oferecer emprego e cidadania, dificilmente as pessoas optarão pela vida do crime. Aí sim será legítimo falar de escolha individual moral. Os que têm alternativa digna e optam pelo crime, esses sim serão presos com toda a justiça. Muito se falou sobre o valor simbólico da prisão de Nem. Mas chefões do tráfico são presos ou mortos há décadas. Valor simbólico deve ser atribuído ao feito que consagra uma mudança estrutural, ou abre caminho a ela. Valor simbólico terão as prisões de políticos corruptos e banqueiros ladrões (aqui é preciso ser justo: a revista “Veja” contribui intensamente nesse sentido). Valor simbólico terá a entrada em vigor da lei da Ficha Limpa. Mas no mesmo dia da prisão de Nem, o ministro Luiz Fux, do STF, deu parecer contrário a um ponto importante da lei. E, nas semanas anteriores, assistimos ao velho espetáculo da corrupção política. Só o Nem foi preso. Mas, na origem, é a ilegalidade do centro mesmo de onde a lei emana que condena a estrutura social brasileira ao ciclo vicioso da injustiça profunda, de que a criminalidade é o grande sintoma.

As favelas recebem UPPs; a classe média recebe choques de ordem. Mas o desafio final não é a pacificação da Rocinha, e sim de Brasília.

80º Programa Cidadania e Socialismo

terça-feira, 15 de novembro de 2011

FRASE DA SEMANA

“PODEMOS FACILMENTE PERDOAR UMA CRIANÇA QUE TEM MEDO DO ESCURO; A REAL TRAGÉDIA DA VIDA É QUANDO OS HOMENS TÊM MEDO DA LUZ.”

Platão

A Cidadania desencarnada e o fascismo de mercado

A história recente do Brasil, do esgarçamento da ditadura militar até os dias de hoje, tem sido feita dos fluxos e refluxos da luta interminável pela afirmação daquilo que foi batizado, nos tempos heróicos da resistência democrática, como “nova cidadania”. Uma poderosa aspiração por mudança, como um espectro que ronda os acontecimentos, tentou se apossar do corpo da política, na busca por conteúdos novos para a democracia e na tentativa de inventar uma nova “gramática do poder”.
O desencanto com a política e o refluxo dos movimentos sociais, marcas indiscutíveis do momento atual, estão situados no reverso daquele impulso. Uma espécie de contraface lógica de um processo que extrapola os limites do conjuntural. São fenômenos lastreados no estrutural e, por conta disto, só podem ser explicados a partir dos percalços da história recente. Definem o perfil da conjuntura política em curso, mas decorrem de causas que vão muito além dela.
O espírito buliçoso da “nova cidadania”, que agitava o âmago de todos os conflitos, pintou e bordou na resistência e no pós-ditadura. Não há fatos da política brasileira nem estruturas da nossa sociedade que tenham conseguido ficar imunes ao impulso renovador do ativismo cidadão. Mesmo golpeado por derrotas parciais, ele ressurgia sempre, transportando para outras frentes de luta o seu inesgotável estoque de esperança.
Em alguns casos essa presença foi explícita e luminosa. Basta ver a enorme fieira das grandes manifestações populares que pontuaram os diferentes momentos do período. O movimento da “Anistia, Ampla, Geral e Irrestrita”, as “Diretas-Já”, os comícios da campanha pela eleição indireta de Tancredo Neves, o movimento Lula-Brasil nas diretas finalmente reconquistadas, além do Fora Collor, que afastou por corrupto o primeiro presidente eleito depois da ditadura, foram manifestações gigantescas e impressionantes. Concentradas em curto período histórico, elas marcaram época.
Além dos eventos grandiosos, o período desencadeou processos que, como manchas de óleo, aos poucos foram refazendo a fisionomia dos diferentes agentes políticos e sociais. Houve mudanças radicais na agenda de debates de todos os partidos políticos e de todas as estruturas intermediárias de poder da nossa sociedade. Sem falar, claro, dos novos movimentos sociais – sindicalismo renovado, associativismo de moradores, movimentos culturais, ecológicos, feministas, antidiscriminatórios e tantos outros – todos diretamente ligados ao impulso da “nova cidadania”.
A forte presença de uma aspiração renovadora, apesar dos acontecimentos grandiosos que conseguiu produzir, não logrou fechar o circuito de uma mudança qualitativa no quadro da política. A anistia veio, mas não foi “ampla, geral e irrestrita”. As diretas não foram “já”. Tancredo Neves, depois de refazer o roteiro dos comícios das diretas, ganhou no Colégio Eleitoral, mas agonizou e morreu antes da posse. A coalizão de veto ao regime militar foi hegemonizada, no governo Sarney, pela Aliança Democrática, no cerne da qual se articulavam os setores mais moderados da oposição e os segmentos recém descolados do autoritarismo.
Dependendo do pano de fundo sobre o qual se projetam tais acontecimentos, eles podem ser vistos como derrotas parciais ou vitórias relativas. O vetor resultante foi a chamada “transição intransitiva”, na qual se resgatou a lógica do velho patrimonialismo brasileiro. O rearranjo no interior das elites, a lógica da restauração da ordem a partir de mudanças controladas de cima, padrão recorrente nas grandes crises da nossa vida política, foi a marca constitutiva da chamada “Nova República”.
No milagre econômico da ditadura, a estrutura social foi metamorfoseada no contexto opressivo e de eclipse total no livre jogo da política. Na transição intransitiva, os novos agentes sociais subversivos, apesar da presença forte, não conseguiram se apossar do corpo político. O surto neoliberal, que emergiu no intervalo trevoso do primeiro Fernando e se consolidou na era FHC, contribuiu para embaralhar ainda mais as cartas da política.
A inversão de mão nas relações entre o estado e a sociedade civil, antiga bandeira dos movimentos sociais, se realizou como simulacro. Onde se queria o estado controlado pelo ativismo cidadão, tivemos a farsa do estado mínimo, que na verdade só minimizou o que nele havia de conquistas sociais. O processo de privatização transferiu o patrimônio estatal para os pontos fortes do mercado, onde ele continuará fora do alcance do controle democrático da cidadania.
O deslocamento de forças políticas, antes identificadas com a luta por mudanças radicais nas práticas políticas, para o campo conservador alcançou seu ponto culminante com a chegada do PT ao governo central. O “pequeno insolente” virou grandalhão indolente e trocou a “mística radical” pelo intestino grosso da pequena política. A maior liderança popular produzida pelo impulso vindo de baixo, que cresceu na planície como Quixote da classe trabalhadora, serrou de cima no Planalto como o Sancho Pança da restauração oligárquica.
Quando uma época de tantas e tamanhas mudanças não logra se completar como uma mudança de época, o processo político volta a correr na bitola tradicional. O conservadorismo recompõe seu padrão de domínio pelas mágicas do envolvimento e da cooptação e a “nova cidadania” envelhece como uma realidade apenas virtual. Produziu surtos, combinou fulgurações e fugas, e, no momento atual, paira sobre os acontecimentos como um espírito desencarnado.
Em tal quadro, a política se apequena como administração e gerência do interesse puro. Um teatro de sombras, sem projetos, nitidez ou transparência, que cuida da mera reprodução da ordem dominante, onde os magnatas do mercado nadam de braçada. Controlam a mídia grande e mandam nos poderes da República. Máquinas eleitorais, acoitadas em máquinas de governo e financiadas pelas grandes corporações decretam a falência do voto como instrumento de mudança.
O poder corrosivo do dinheiro é o único “valor” de livre curso entre os mantenedores da ordem dominante. Basta ver a fieira interminável de escândalos que começam em obras superfaturadas e terminam nos tesoureiros de campanha eleitoral. O formato atual de financiamento privado de campanha, elo que articula o absolutismo do mercado com a pequena política, é o fator determinante da corrupção sistêmica e da primazia do poder econômico como soberano da política.
A cada nova eleição, a metástase se alastra. Os vitoriosos para a chefia dos executivos (presidente, governadores, prefeitos) serão sempre os que mais gastarem nas campanhas. Em segundo lugar, estarão os segundos também em gastos. Uma exceção ou outra, aqui ou acolá, confirma a regra geral. O peso do poder econômico no resultado eleitoral se tornou ostensivo e despudorado.
Nos legislativos, a mesma história. Reduziu-se o espaço dos candidatos de opinião, sejam eles de esquerda, centro ou direita. Usassem macacões como pilotos de corrida, os parlamentares ostentariam na roupa as logomarcas dos patrocinadores. Ao invés de valores ideológicos e programas partidários, o ordenamento da representação se faz pelo interesse das grandes corporações, como no ideário fascista de Mussolini.
As campanhas eleitorais no Brasil estão entre as mais caras do mundo. Além de caras, se organizam de tal forma que torna impossível a fiscalização efetiva. São pouquíssimos os países que permitem ao candidato arrecadar e gastar fundos de campanha, tarefa que deveria ser de responsabilidade exclusiva das organizações partidárias.
Um seleto grupo de magnatas do poder econômico monopoliza o financiamento de campanha eleitoral no Brasil. Os grandes banqueiros, as empreiteiras gigantescas, os estofadinhos do agronegócio, os mega-exportadores, os novos barões da privatização tucana e das fusões lulistas, além, é claro, da miríade de fornecedores diretos de bens e serviços para o setor público. A conta do financiamento privado é paga em dobro pelo que vaza ou deixa de entrar nos cofres públicos: obras superfaturadas, licenças ambientais criminosas, subsídios suspeitos, sonegação e elisão fiscal, vista grossa para armações cavilosas.
O financiamento privado é a espoleta que aciona a mercantilização geral do processo: a corrosão da representação, a desmoralização das instituições republicanas e a gangsterização da política. Hoje, no Brasil, governar é intermediar negócios. A soberania popular foi substituída no artigo primeiro da Constituição. Agora, “todo poder emana dos financiadores de campanha e em seu nome está sendo exercido”. A prevalência de tal situação, ancorada nos percalços da história recente, explica o refluxo do ativismo cidadão. Só um novo choque da cidadania reencarnada poderá nos livrar do fascismo de mercado.
Rio, novembro de 2011
Léo Lince

79º Programa Cidadania e Socialismo