sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O tempo não para

Paulo Passarinho
Qui, 15 de outubro de 2009 14:36


Paulo Passarinho
Paulo Passarinho
Em meu último artigo aqui publicado, A Ruptura Necessária, lembrei que, em decorrência da vitória do projeto liberal em nosso país, abandonamos a idéia de um projeto próprio de desenvolvimento - baseado nas nossas próprias necessidades, carências e potencialidades - e abrimos mão do objetivo de universalizar serviços públicos de alta qualidade para todo o nosso povo.

Fui questionado sobre como romper com o processo que nos amarra ao modelo liberal-periférico. Esse modelo aposta na inserção subalterna do Brasil no processo de globalização e, ao nos induzir à integração financeira e produtiva, nos retira instrumentos essenciais ao planejamento de nosso futuro, particularmente nas esferas relativas às políticas monetária, cambial e fiscal.

O Real nesse momento, por exemplo, volta a sofrer uma violenta valorização frente ao dólar, resultado da abertura financeira que removeu mecanismos elementares de proteção cambial. A distorção da entrada de dólares, em busca de rápida valorização em bolsa ou em títulos da dívida pública, contribui para a continuidade da assombrosa elevação do endividamento público em títulos, resultante, entre outras, da necessidade de se esterilizar permanentemente o volume em excesso de reais, que a enxurrada de dólares provoca na base monetária.

A valorização do Real - além de afetar exportações e estimular importações - acaba, assim, por deixar as suas conseqüências na esfera fiscal. O orçamento público é sacrificado pela pesada despesa que o pagamento de juros e amortizações gera. O permanente e importante trabalho da Auditoria Cidadã da Dívida (www.divida-auditoriacidada.org.br) nos mostra que, no exercício de 2008, mais de trinta por cento do Orçamento da União ficaram comprometidos com as despesas com o serviço da dívida, enquanto que os gastos com Saúde, Educação, Organização Agrária, Saneamento, Habitação, Transporte e Assistência Social ficaram com menos de doze por cento.

Essa é a razão de fundo que leva com que a opção macroeconômica liberal implique renunciar às políticas públicas de caráter universal, impondo a chamada focalização como estratégia de minimização das distorções sociais. Os serviços públicos vão paulatinamente se voltando exclusivamente aos mais pobres - ao mesmo tempo em que se degradam -, enquanto àqueles que possuem um mínimo de renda disponível, o modelo prevê que necessidades básicas como a saúde, a educação, os transportes ou a previdência sejam atendidas por serviços privados, e altamente custosos.

O rompimento com um modelo dessa natureza depende essencialmente da política e da capacidade de se construir uma ampla aliança de setores sociais que - unificados em torno de objetivos comuns - queiram de fato construir uma alternativa.

A experiência que foi protagonizada pelo PT e levou Lula ao governo fracassou. Em nome de uma concepção oportunista e covarde de governabilidade, fez-se a opção por não se alterar o essencial desse modelo - a política macroeconômica e a focalização das políticas sociais. Ao mesmo tempo, introduziu-se no modelo a ampliação do atendimento emergencial aos miseráveis, efetivou-se uma política de ganhos reais ao salário mínimo e se expandiram mecanismos de crédito, inclusive aos setores populares, com altíssimos custos financeiros.

A combinação dessa opção com o boom do comércio internacional, especialmente no mercado de commodities agrícolas e minerais, permitiu ao país crescer e respirar com um pouco mais de alívio. Crescemos muito abaixo do que a esmagadora maioria dos países, mas, em relação à nossa própria história recente, o período entre 2004 e 2008 mostrou efeitos na geração de empregos e de renda que não se viam há muito tempo. As consequências políticas e eleitorais desses resultados são evidentes e isso ajuda a consolidar o caminho adotado pela maior parte da esquerda ao seguir Lula.

Contudo isso nos produz uma fratura de difícil recuperação. Os setores de esquerda que se opuseram às opções do governo Lula e procuram resistir não se mostraram - até agora - capazes de produzir uma polarização política que afete a unidade do bloco lulista.

Pensar formalmente a articulação de um programa de reformas que altere a política macroeconômica - em prol de uma perspectiva de reversão do processo acelerado de desnacionalização do nosso parque produtivo -, recupere a bandeira da universalização dos serviços públicos, e enfrente a exigência histórica da reforma agrária e da mudança do modelo agrícola não é a maior dificuldade.

O enorme obstáculo que temos à frente é a rearticulação de um pólo de esquerda na sociedade com capacidade de mobilização, organização e unidade para enfrentar a nova hegemonia conservadora que se fortaleceu, com a guinada político-ideológica do PT e de seus aliados.

De alguma forma, os vinte anos de acúmulo que, do início dos oitenta ao começo do século XXI, nos levaram à vitória de Lula, nos empurraram também à metamorfose do bloco que dirigiu a resistência ao neoliberalismo, mas a ele acabou por se subordinar.

A sociedade brasileira encontra-se fraturada, violentada, desamparada e insegura. Os problemas são gritantes, mas a alienação popular e a incapacidade intelectual de respostas à altura da gravidade da situação dominam o cenário.

O carisma popular de Lula e a ofensiva mediática que impõe uma visão otimista da realidade e das opções políticas que vêm sendo assumidas pelo país produzem uma espécie de anestesia geral.

Dar a volta por cima, recuperar a ofensiva política, construir uma aliança programática entre os que resistem são tarefas que não se resolverão de uma forma fácil. Poucas vezes na história se observa fenômenos de transformismo ideológico e político como o que ocorreu entre nós.

Ao mesmo tempo, os desafios que estão colocados à nossa frente são gigantescos. Somos um país continental, riquíssimo, extremamente desigual e com mais de 190 milhões de brasileiros. E os problemas são cada vez mais complexos e gritantes.

Dessa realidade se forjarão as condições para a retomada de uma luta que arrefeceu, mas continua em curso.

A vida exige, as circunstâncias provocam a ação humana e o tempo não pára.

14/10/2009

Paulo Passarinho é economista e presidente do CORECON-RJ


http://www.socialismo.org.br/portal/economia-e-infra-estrutura/101-artigo/1199-o-tempo-nao-para

Os três Brasis

Os problemas desse Brasil fraturado não são apenas a carência material dos mais pobres e o sofrimento que tal carência carreta, mas a impossibilidade de coesão social.

A dificuldade maior para entender este nosso país é que não há um Brasil: o Brasil é três.

Há o Brasil de 50 milhões de pessoas, com uma renda per capita comparável à dos países europeus de nível médio. Este país é dono de 323 milhões de hectares de terras aráveis, detentor das maiores reservas de água potável do planeta; de enormes reservas de gás combustível e de petróleo; da quarta província mineral e do décimo parque industrial do mundo. Para explorar essa riqueza, dispõe de uma força de trabalho versátil, disciplinada e dócil. A parte superior desse contingente populacional (o 1% de brasileiros, 2 milhões de pessoas) tem uma renda mensal de 20.000 dólares, que declina gradualmente até patamares de 1.500, 2000 dólares mensais – um conjunto de 50 milhões de gente endinheirada.

Este Brasil vai muito bem, obrigado. Se melhorar, piora.

O Brasil nº. 2 tem cerca de uns 120 milhões de pessoas e uma boa parte desse total não vai indo de todo mal. Ou melhor: não percebe que está recebendo uma educação insuficiente, cuidados de saúde precários, aposentadorias aviltadas, e que, amanhã, vai pagar tudo isso. Mas, hoje, o gasto que faz com o dinheiro que está recebendo é suficiente para ajudar a diminuir o impacto da crise econômica em nosso país.

O problema grave dessa porção majoritária da Nação é a alienação, no que esta tem de empobrecimento intelectual e de corrosão do caráter. O pavor de ser rebaixado ao andar térreo impede que esse enorme contingente populacional se solidarize com os marginalizados do consumo e da cidadania. Por isso, esse enorme contingente populacional constitui uma força conservadora e, em algumas situações, até mesmo reacionária.

O Brasil nº. 3 é onde uns 60 milhões de brasileiras e brasileiros amargam uma vida de frustrações e de miséria.

Este Brasil vai de mal a pior. Porém, não se dá muito conta disso, porque está recebendo um subsídio mensal do governo e, com essa quantia, engana a fome.

Uma das seqüelas perversas da sua pobreza é a cadeia de corrupção a que ela dá origem: começa quando o narcotráfico contrata o menino para fazer entrega de droga e culmina nos mais altos estratos da pirâmide social e nos escalões superiores do Estado.

Os problemas desse Brasil fraturado não são apenas a carência material dos mais pobres e o sofrimento que tal carência carreta, mas a impossibilidade de coesão social, sem a qual nenhum aglomerado humano consegue superar a barbárie e transformar-se em uma Nação civilizada.

Portanto, quem nasceu no Brasil nº. 1 carrega consigo um problema moral: a difícil opção entre o desfrutar irresponsável do seu status financeiro e social, e o arriscar carreira, status e até mais, a fim de construir com os outros dois Brasis uma Nação, autônoma, justa, solidária, capaz de partilhar da luta por uma Humanidade livre da dominação capitalista.

Dessa opção depende o valor moral de cada um dos milhões que vivem bem.

http://www.correiocidadania.com.br/content/view/3800/9/

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Poema da semana

PRIMEIRO LEVARAM OS NEGROS
MAS NÃO ME IMPORTEI COM ISSO
EU NÃO ERA NEGRO
EM SEGUIDALEVARAM ALGUNS OPERÁRIOS
MAS NÃO ME IMPORTEI COM ISSO
EU TAMBÉM NÃO ERA OPERÁRIO
DEPOIS PRENDERAM OS MISERÁVEIS
MAS NÃO ME IMPORTEI COM ISSO
PORQUE EU NÃO SOU MISERÁVEL
DEPOIS AGARRARAM ALGUNS DESEMPREGADOS
MAS COMO TENHO MEU EMPREGO
TAMBÉM NÃO ME IMPORTEI
AGORA ESTÃO ME LEVANDO
MAS JÁ É TARDE
COMO EU NÃO ME IMPORTEI COM NINGUÉM
NINGUÉM SE IMPORTA COMIGO


Bertold Brecht ( 1898 – 1956 )
Poeta e dramaturgo alemão

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

1º Programa Cidadania e Socialismo com Claudio Leitão

Esse programa foi ao ar no dia 09 de Outubro de 2009.
Parte 1:


Parte 2:


Parte 3:


Parte 4:


Parte 5:


Parte 6:


Parte 7:


Parte 8 (fim):

O Fim do Socialismo?

Introdução

A queda do muro de Berlim e a derrocada do ex-império soviético propiciaram um terreno fértil para que surgisse a tese de F. Fukuyama sobre “O fim da História”, da luta de classes e das contradição entre o mercado e o Estado. Decorrida pouco mais de uma década, os vaticínios de Fukuyama e seus adeptos não deixam de ser ridículos, sobretudo à luz dos permanentes confrontos internos à imensa maioria das sociedades e as guerras travadas em todos os continentes.

A derrota dos socialistas franceses nas eleições de abril de 2002 e a ascensão da extrema direita liderada por Le Pen têm provocado interrogações e interpretações das mais diversas na mídia e nos meios acadêmicos e políticos, afirmando alguns peremptoriamente “o fim do socialismo”.

Efetivamente, o fenômeno Le Pen parece ser mais um elo na cadeia de expansão da extrema direita – xenófoba, racista e ultra-nacionalista – sobretudo, no continente europeu.

As vitórias nas eleições francesas de Le Pen, de Silvio Berlusconi na Itália, Jorge Haider na Áustria, Pia Kjaersgaard na Dinamarca e de Pim Fortuyn na Holanda convidam para uma reflexão sobre a dinâmica dos movimentos políticos da “esquerda” e suas perspectivas nesta “era de incertezas”.

Na ânsia de prever e predizer o futuro, os arautos da derrota “irreversível” do socialismo se baseiam em idéias genéricas para explicar casos específicos enquanto ignoram as especificidades contextuais.

Uma análise mais correta dos fatos nos remete à dinâmica das origens e das relações históricas presentes na gênese do pensamento e dos movimentos socialistas. Longe de ter esgotado seu papel na História, o socialismo ressurge como única alternativa humanista face à irracionalidade, os desmandos e a alienação do sistema capitalista.
Das origens: do socialismo utópico ao científico e ao “real”

Dos escombros da Revolução Francesa e da Restauração posterior ao Congresso de Viena (1815) surgiram várias propostas e projetos visando a construção de relações sociais mais dignas e eqüitativas. Os assim chamados socialistas utópicos – Fourier, R. Owen e Saint Simon, seguidos pelo cooperativismo de Proudhon refletiram os esforços de seus protagonistas em corrigir as assimetrias sociais e as injustiças cometidas contra os trabalhadores e suas famílias no sistema industrial emergente. Em 1848 saiu publicado o livro de F. Engels sobre “A situação da classe operária na Inglaterra” e, no mesmo ano, o Manifesto Comunista de K. Marx e F. Engels conclamou os proletários de todos os países a unir seus esforços para romper as cadeias de exploração capitalista na luta pela conquista dos Direitos Humanos. As derrotas fragorosas das revoluções burguesas em 1848, na França, na Alemanha, na Áustria, Hungria, Polônia e Rússia, não conseguiram conter as pressões de milhões de trabalhadores arregimentados pelo processo de industrialização emergente.

Na segunda metade do século XIX, a expansão do modo de produção industrial estimulou a formação de sindicatos e, posteriormente, de partidos políticos dos trabalhadores em todos os países europeus. Embora considerados base dos partidos políticos socialistas, seus lideres julgaram a ação sindical insuficiente para induzir transformações do sistema, uma discussão apaixonada e prolongada que perpassou os movimentos em todo o continente europeu, particularmente na Rússia Czarista e na Alemanha imperial.

“Reforma ou revolução” foi o divisor de águas em todos os partidos socialistas e social democratas, sendo os defensores mais articulados da primeira opção os teóricos alemães K. Kautsky e Eduardo Bernstein e os Mensheviques, na Rússia. Os revolucionários, minoritários nos partidos, contaram entre seus porta-vozes mais brilhantes Lênin e Trotsky na Rússia e Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht (ambos assassinados em 1919) na Alemanha. Sem rejeitar a luta contínua por reformas sociais, por melhorias na situação dos trabalhadores e pela defesa das instituições democráticas, os revolucionários se orientaram por seu objetivo último – a conquista de poder político e a abolição do sistema de exploração capitalista. A luta pela reforma social seria o meio, a revolução social – o fim.

Sob a liderança da social-democracia alemã e francesa foi fundada em 1889 a Segunda Internacional Socialista (a Primeira tinha sido dissolvida em 1873, em conseqüência das intermináveis disputas entre a facção anarquista liderada por Bakunin e os grupos seguidores de Marx e Engels). Mas, apesar do crescimento numérico contínuo dos partidos filiados e sua conquista de bancadas nos respectivos parlamentos, a Segunda Internacional literalmente implodiu com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, quando os partidos socialistas votaram a favor da guerra e conclamaram a classe trabalhadora a apoiar o esforço bélico nacional. Em vez de unir-se contra o massacre que durou quatro anos ceifando dezenas de milhões de vidas, os partidos, com a honrosa exceção de Jean Jaurés, na França, Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg, na Alemanha e os Bolsheviques na Rússia entoaram discursos patrióticos em defesa dos respectivos monarcas e pátrias.

Para manter acesa a chama do internacionalismo, reuniram se sucessivamente em duas aldeias suíças, Zimmerwald (1915) e Kienthal (1916) uma dezena de representantes das correntes revolucionárias, elaborando um manifesto que conclamava para o fim imediato das hostilidades e a instalação de governos republicanos em todos os países. A eclosão da Revolução Russa (fevereiro e outubro de 1917) e sua defesa vitoriosa contra as invasões de vários exércitos que pretendiam restaurar a monarquia pareciam inclinar a balança a favor dos movimentos revolucionários.

Mas, as repressões sangrentas dos movimentos revolucionários na Hungria (1919) e na Alemanha, bem como a derrota das tropas soviéticas frente ao exército polonês do Marechal Pilsudski fizeram refluir a onda revolucionária e levaram ao isolamento da União Soviética. Uma das conseqüências da hostilidade do mundo capitalista e suas organizações internacionais foi a instalação da sede da Terceira Internacional Comunista em Moscou e seu total controle pelo PCUS – Partido Comunista da União Soviética e, posteriormente, pela KGB, a polícia secreta de Stalin.

As barbaridades cometidas por esta durante a Guerra Civil espanhola (1936-39) contra militantes oposicionistas, particularmente os anarquistas e trotskistas pelas tropas e a polícia sob controle dos stalinistas; suas denúncias e a entrega de militantes comunistas opositores à Gestapo – a polícia secreta dos nazistas e finalmente, a assinatura do Pacto de não-agressão entre os ministros de Relações Exteriores da Alemanha (Ribbentrop) e da URSS (Molotov) em 1939 pareciam ter selado o destino da Terceira Internacional.

Eliminando brutalmente os partidos e correntes oposicionistas, a “ditadura do proletariado” passou à ditadura do partido, dirigido pelo Comitê Central que, por sua vez, estava totalmente controlado pelo secretário geral o “camarada” Stalin.

O dilema existencial causado aos militantes comunistas sobretudo na Alemanha e Europa Central em conseqüência da aliança entre Hitler e Stalin, reforçou e confirmou as criticas levantadas contra o Termidor – a decapitação da elite revolucionária de 1917, levada aos tribunais, condenada e executada nos famigerados processos de Moscou.

Na mesma época, ocorreu o exílio forçado seguido de perseguição implacável do líder da oposição Leon Trotsky (autor de “A Revolução Traída”) até o México, onde foi assassinado a mando de Stalin, em 1940. A invasão da ex-URSS pelas nazistas em 1940 e sua aliança com as democracias ocidentais (EUA e Grã-Bretanha) na guerra contra as potências do eixo, Alemanha, Itália e Japão, abafaram as críticas e restrições contra o regime de terror e seu partido, enquanto os PCs da França e Itália, alcançaram grande votação nos anos pós-guerra.

A reconstrução da Europa pelo Plano Marshall e a eclosão da Guerra Fria iniciaram um processo de perda de prestígio e de votos dos PCs e criaram condições para o ressurgimento dos partidos social democráticas e socialistas como representantes dos trabalhadores, nos países da Europa Ocidental, na luta por uma distribuição mais eqüitativa do produto dos “milagres econômicos”.

O ponto culminante desta tendência foi a ascensão ao governo de W.Brandt seguido da H.Schmidt na Alemanha, de F. Mitterand na França, de M. D’Alema e R.Prodi na Itália; governos social-democráticos nos países escandinavos, na Bélgica e Holanda e, por último, a reconquista do poder das mãos da conservadora M. Thatcher pelos trabalhistas de T. Blair.

A partir dos anos 90, com a queda do socialismo "real" no leste europeu, novamente ofereceu-se uma chance aos partidos social democratas para que cumprissem o papel histórico de apresentar uma alternativa viável aos desmandos e a irracionalidade do sistema capitalista em sua versão neoliberal.

Acreditando na possibilidade de desenvolvimento econômico nos parâmetros da dinâmica do capital financeiro, mesmo para os países de desenvolvimento "tardio" ou o chamado "terceiro mundo", os dirigentes dos partidos social democratas aliaram-se aos partidos de "centro direita" para assumir o governo. Para justificar suas políticas de compromissos e de abandono das reivindicações dos trabalhadores ao aderir ao receituário neoliberal do FMI, foi elaborada uma esdrúxula teoria sobre a "Terceira Via" a partir de idéias seminais de Anthony Giddens, acadêmico e guru de Tony Blair, esposada pelos principais chefes de Estado europeus, reunidos num encontro, em 1999, em Florença, Itália. e ao qual compareceram também os presidentes B. Clinton dos EUA e F.H. Cardoso do Brasil. A reunião que devia oficializar a doutrina da Terceira Via, na realidade foi o início de sua decadência, com a perda sucessiva de votos, cadeiras no Parlamento e inclusive de governos, na Áustria, no Portugal, na Itália e, mais recentemente, na França de Lionel Jospin. O eleitorado, tradicionalmente de "esquerda" que dava apoio e votos aos partidos social democratas, expressou seu descontentamento e descrédito e afastou-se das lideranças tradicionais, abstendo-se de votar e abrindo espaço para o avanço dos partidos da "direita", os conservadores xenófobos, racistas e ultra-nacionalistas.

O cenário emergente no final do século vinte criou desafios econômicos, sociais e políticos para os quais a social democracia, mesmo vestida de seu manto de Terceira Via, não estava preparada e capacitada de responder. Com a recessão profunda que se abateu sobre a economia norte americana cujos efeitos se propagaram como em círculos concêntricos através de todo o sistema mundial, inúmeros países "emergentes" praticamente afundaram em suas dívidas e contradições sociais internas. O colapso da Argentina em 2001 parece assinalar que o sistema financeiro internacional estaria nos limites de poder "salvar" economias falidas, endividadas e corruptas (México, Tailândia, Indonésia, Rússia, Brasil, Turquia, Equador, Filipinas e outras). Mas, ao caos econômico segue inevitavelmente o social e político, profusamente demonstrado pelas manifestações de massas de revoltados, cidadãos empobrecidos e marginalizados.

Do outro lado da "cortina de ferro", a derrocada do sistema stalinista na ex-URSS e nos países satelites resultou de imediato numa deterioração violenta das condições de vida da maioria das populações, repentinamente expostas às turbulências do mercado, sem a proteção paternalista ( educação, saúde, habitação, emprego) do Estado.

Na década dos noventa, quarenta países estavam sendo dirigidos por governos social democratas ou por alianças domindadas pela "esquerda". Entretanto, revelaram se impotentes para induzir mudanças sociais e econômicas face à pressão avassaladora da globalização econômica e militar e, devido aos compromissos assumidos com os representantes do capital nacional e internacional.

As lideranças políticas dos partidos social democratas inclusive o nosso PSDB ficaram presas na armadilha que elas próprias construíram. Tendo pregado e defendido durante anos que não haveria futuro fora do sistema neoliberal, assumiram plenamente a responsabilidade pelas políticas econômicas, financeiras e trabalhistas decorrentes, contribuindo para o agravamento da marginalização e exclusão de milhões de pessoas em conseqüência do aumento da “divida social”, enquanto nas questões de política externa aderiram à doutrina da globalização "inevitável", aliando-se incondicionalmente à superpotência hegemônica.
Socialismo no século XXI

As políticas neoliberais e suas desastrosas conseqüências em termos da deterioração da qualidade de vida dos trabalhadores e da maioria da população estão na raiz do distanciamento das massas de seus partidos tradicionais e dos governos com os quais estes colaboraram, ou apoiaram. Para os grupos mais politizados, os partidos social democratas e socialistas perderam o poder mobilizador, incapazes que foram para evocar uma visão alternativa da sociedade. Outra parte das vozes e votos discordantes foi para a "direita" (vide o avanço de Le Pen, J. Haider e outros) que , pregando também contra a globalização, acolheram os votos dos pobres marginalizados, da baixa classe média e dos desempregados que se sentiram abandonados pelos partidos de esquerda tradicionais.

Votos de protesto apoiando os candidatos da oposição não significam necessariamente uma tomada de posição consciente, uma adesão a uma plataforma ideológica e política alternativa. Parece, contudo, cada vez mais nitidamente que, para os partidos tradicionais da esquerda, o objetivo de construir uma sociedade alternativa mais justa foi substituído pela necessidade de manter a organização burocrática e os privilégios decorrentes de seu funcionamento e das alianças celebradas com os antigos adversários. A participação nas instituições da ordem burguesa capitalista abriu as portas para a cooptação das organizações sindicais e políticas e de seus dirigentes. Assim, os partidos socialistas e social democratas não apenas legitimaram as políticas do sistema capitalista, mas passaram também a defende-las nos fóruns nacionais e internacionais.

Sendo assim, persiste o impasse histórico de "reforma ou revolução".

Tanto os social democratas reformistas quanto os revolucionários replicaram em suas organizações e nas práticas políticas os padrões de conduta e de liderança autoritários, baseados em raciocínios cartesianos lineares e unilaterais com suas interpretações deterministas da História. Uma proposta alternativa abrangeria inevitavelmente desde uma visão do mundo diferente ("o mundo não é uma mercadoria"..) até novas formas de organização e mobilização social. A nova visão, ao rejeitar a globalização imposta "de cima para baixo", propõe a integração a ser realizada pelas populações, "de baixo para cima". Em vez de um punhado de executivos, empresários, tecnocratas e seus intelectuais orgânicos, serão as organizações populares e democráticas, baseadas na participação e o engajamento de todos, que conduzirão o processo de transformação social, econômica e política. Essa empreitada e as tarefas dela conseqüentes não podem ser atribuição de uma minoria "iluminada". A conquista dos Direitos Humanos, a plena vigência do Estado de Direito e da justiça social exigem ações coletivas nas quais os atores sociais se tornem agentes ativos e conscientes do processo histórico e gestores de seu destino.

Aos céticos e cínicos que desdenhem de uma análise crítica do contexto histórico, sob a alegação da inviabilidade e inutilidade de "utopias", deve se lembrar o que seria o mundo se não houvesse, em todas as gerações, indivíduos capazes e corajosos de pensar as alternativas, posteriormente transformadas em realidade. Baseando nos na premissa "toda a realidade é construção social" inferimos que aquilo que foi construído por seres humanos, por eles pode ser desconstruído e reconstruído.

Afinal, a História do capitalismo data de alguns séculos apenas, em que foram travadas inúmeras guerras, com dezenas de milhões de pessoas exterminadas e inestimáveis recursos naturais devastados.Impelido por uma dinâmica perversa de concentração e polarização em todas as esferas da vida social, o sistema não parece dispor de saídas para romper o círculo vicioso. Portanto, seria ilógico e injusto rejeitar o socialismo, invocando o fracasso da única experiência de sua implantação, em condições históricas extremamente adversas.

Mas, diferentemente do embate entre capital e trabalho nos séculos XIX e XX que polarizou os conflitos sociais e políticos, o socialismo em nosso século será construído pelas alianças e redes entre movimentos e organizações sociais, em nível local, nacional e internacional. Suas lutas transcendem as questões salariais para enfrentar os problemas da exclusão social, do desemprego, da destruição de pequenas empresas da precarização das relações de trabalho, da biodiversidade e da devastação ambiental, das reformas agrária e urbana e, sobretudo, da defesa intransigente dos Direitos Humanos em todas suas dimensões.

Para corresponder ao anseio generalizado por uma cidadania plena, de direitos e responsabilidades, o socialismo do século XXI será democrático, aberto à participação de todos e visceralmente comprometido com a liberdade individual e a justiça social.

Voltamos, portanto, a afirmar "um outro mundo é possível!”



HENRIQUE RATTNER

Artigo retirado do site : http://www.espacoacademico.com.br/012/12rattner.htm

domingo, 11 de outubro de 2009

Não vi a Cuba de Yoani

Joaquim São Pedro*

Li a entrevista da blogueira cubana Yoani Sanches à revista Veja. Quero dizer que estive em Cuba há um ano. Por dez dias, viajei entre Havana e Camaguey. Foram cerca de 570 quilômetros percorridos pela Carretera Central de Cuba, uma rodovia de 1.140 quilômetros de extensão que vai desde Havana até Santiago de Cuba. Uma viagem fascinante. Rara oportunidade de presenciar um pouco da história, da cultura, da fauna, da flora e das atividades agropecuárias do país.

Conheci um país belíssimo de um povo bonito, predominantemente de negros, brancos e mulatos; gente alegre, brincalhona e hospitaleira. Nada disposta a ficar chorando os seus problemas para que o mundo sinta pena dela. Conversei com as pessoas, jovens e velhos, homens e mulheres. Constatei que todos querem mudanças, que representem desenvolvimento, mais emprego, mais conforto, mais oportunidades de moradia.

Cuba foi isolada por uma política externa imposta pelos EUA em represália ao triunfo da revolução. Mas o povo cubano sobreviveu e, por isso, quer dialogar, porque pretende vender e comprar produtos e serviços de países que tenham a mesma disposição. Mas sem que isso represente interferência externa na sua soberania. É pura relação diplomática e comercial.

A revolução assegurou aos cubanos valores que se tornaram inalienáveis. Falo de solidariedade, do respeito à diversidade, do espírito de coletividade, da ética, do amor ao próximo. De direitos como saúde pública, educação, emprego, saneamento básico, moradia e autonomia para o governo gerir as suas riquezas naturais, sem ter de entregá-las ao estrangeiro.

O boicote causou problemas a Cuba, mas eles estão sendo enfrentados, sem que para isso seja preciso abrir mão da identidade nacional; sem cartilha neoliberal, como querem fazer crer ao mundo os veículos de comunicação que servem ao imperialismo econômico.

A "liberdade" que os cubanos buscam não é uma passagem aérea na mão, mas o direito de continuar a ser uma Nação capaz de enfrentar suas questões internas e externas, sem unilateralidade, promovendo uma política externa de respeito mútuo e às normas internacionais.

O socialismo não é o problema de Cuba, é a solução, porque representa a conquista de uma respeitabilidade internacional para o país e seu povo. O obstáculo a ser vencido é a opressão externa, liderada pelos EUA, e a propaganda dos contra que tentam macular a imagem de um governo que expulsou milionários americanos que viviam na ilha em absoluto comportamento predatório.

Se fosse bom o receituário imperialista, países tutelados econômica e politicamente pelos Estados Unidos seriam um paraíso. Muitos deles são, em verdade, paraísos fiscais. Honduras, Costa Rica, Guatemala, Colômbia, Chile, Jamaica, Paraguai, para citar alguns ditos democráticos e livres, estão lotados de problemas econômicos, políticos e sociais, com baixíssimo índice de desenvolvimento humano, analfabetismo, concentração de renda, miséria, democracia de fachada e subserviência da mídia ao poder econômico.

Há nestes países dependência escancarada em relação ao capitalismo internacional e muito pouca autonomia política. É o que está ocorrendo agora com Honduras, que não resolve a sua crise, por causa da inércia da OEA, que está enfraquecida por causa da omissão do governo Barack Obama, que não se posiciona sobre o golpe hondurenho, com medo dos conservadores republicanos, que de tudo fazem para inviabilizar seus projetos no Senado.

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU, que mede a qualidade de vida de 182 países, classificou Cuba na posição 51, à frente de Brasil (75), Rússia (71), Arábia Saudita (59), por exemplo, e bem próximo da Argentina (49) e do Uruguai (50). Ou seja, para a ONU, cubanos, argentinos e uruguaios, entre tantos, têm nível de desenvolvimento humano parecido e bem melhor do que o Brasil (75), que, diga-se de passagem, melhorou a sua posição nos últimos anos.

O futuro político de Cuba aos cubanos pertence. Neste ponto, o presidente Lula tem tido uma posição madura na defesa da integração regional, pregando o fim do boicote liderado pelos Estados Unidos, sem que isso represente interferência externa, até porque lá não há insurgência e há normalidade institucional.

Pelo que ouvi e vi dos cubanos, eles não querem esmola, buscam parcerias que representem desenvolvimento. Políticas que tratem de incrementar os setores de comércio, indústria e agropecuária; querem trocar informações e cooperação em ciência e tecnologia; querem comprar máquinas e insumos para o campo para ampliar a sua pauta de exportação.

Minha impressão é que Cuba quer receber turistas e lhes mostrar os seus recursos naturais e culturais; a sua música, as suas praias, os seus drinques, a sua comida, a alegria e a hospitalidade de seu povo. Com uma boa infraestrutura hoteleira, o turismo na Ilha hoje responde por cerca de 30% da receita.

O cubano não esconde mendigos para o turista passar, até porque lá eles não existem. As dificuldades são um problema que todos enfrentam juntos. Não há fome, sede, frio ou pessoas morando na rua. Para enfrentar as catástrofes naturais, como tufões e maremotos, eles desenvolveram técnicas de preservação, antes de tudo, da vida humana, embora haja sérios prejuízos materiais, como o ocorrido no ano passado.

Não há fila em hospitais e todas as crianças estão matriculadas nas escolas, que, obviamente, são públicas e de ótimo nível. A Escola Latino-Americana de Medicina forma médicos e enfermeiros, anualmente, centenas de jovens pobres, do Brasil, dos Estados Unidos, do México, do Canadá, de Honduras, Costa Rica e países da África e da Europa, entre tantos, que não têm oportunidade em seus países.

Nas ruas presenciei gente discutindo política (o cubano fala alto e gesticula muito), tomando sorvete, dançando, cantando e namorando; indo à praia de carro ou em transporte coletivo público. Comi e bebi em casa de cubanos e entendi que não há fartura, há uma racionalidade de consumo necessária e criativa. Há jovens e velhos praticando esportes, indo ao cinema, vendo televisão (inclusive seriados americanos), ao teatro e lendo.

Yoani tem lá os seus motivos e angústias para criticar o seu país. Mas falta-lhe, no meu modo de ver, consistência. Ela critica as estatísticas oficiais, mas não as rebate com números, apenas divaga. Fala em diplomacia popular, como se isso fosse praticado ostensivamente fora do território cubano. Pura utopia. Não imagina os males que o poder econômico causa aos países satélites dos EUA.

Ela diz que quer sair e voltar. Mas não se apresenta com propostas e sugestões de um país melhor. Talvez ela devesse mesmo sair para buscar os seus prêmios. Mas também para constatar que vive, ao lado do seu filho, num país que tem tantos problemas quanto os demais países da América Latina, mas que respeita os direitos dos cidadãos muito mais do que ela imagina.

* Joaquim São Pedro, 51 anos, é jornalista há 25 anos. Começou no Rio de Janeiro e está há 14 anos em Brasília. Trabalhou em O Globo e no Jornal do Brasil. Há dez anos atua em assessoria de imprensa. Trabalhou com o ex-senador Paulo Hartung e na Presidência do Senado. Há dois anos e meio está lotado na Liderança do PSB no Senado. Tem pós-graduação em Direito Legislativo, Ciência Política e Direito Constitucional.

Por que candidato precisa ter ficha limpa

"O princípio constitucional da presunção de inocência constitui regra para a proteção do indivíduo contra o poder. A questão atual, ao contrário, é a proteção do poder, contra o indivíduo"


Edinaldo de Holanda Borges*

A preocupação do povo em manifestar perante o Congresso Nacional a necessidade do estabelecimento de regras para a seleção de candidatos ao exercício de cargos eletivos revela a situação de desespero da opinião pública contra a escalada da corrupção em nosso país. O ato encontrou imediata contestação de políticos e até de representante da Ordem dos Advogados do Brasil.

Duas posições ou correntes de opinião foram criadas, a do povo e a dos contestadores. Os que se opõem à proposição, como apresentada, argúem a falta de certeza da responsabilidade do acusado, quando a condenação emanou do magistrado singular, em primeira instância. O juiz, afirmam, está sujeito como qualquer mortal à possibilidade do erro. Em razão, só o julgamento colegiado, de segunda instância, traduziria a certeza inquestionável da culpa, para impossibilitar o registro da candidatura.

A posição do povo é diferente. A relevância do serviço público, de administração ou de representação popular, exige, para a sua composição, a certeza da honestidade de seus agentes. Inverte-se o raciocínio a favor da sociedade. Não só a certeza da culpa é necessária para limpeza do serviço público. Basta que haja VEEMENTES INDÍCIOS para que a opinião pública, o senso comum, rejeite o candidato. Isso porque os indícios já são qualificados pelo requisito da evidência, para que a preservação da sociedade prevaleça sobre o pleito individual da candidatura.

Resta a reunião dos elementos para que o indício se torne qualificado como veemente. O fato tido como delituoso apresenta-se inicialmente em forma de notícia (notitia criminis), o que autoriza a investigação pelos órgãos de repressão. O inquérito, como procedimento inicial, termina com um relatório da autoridade, que pode concluir pelo indício da culpa. É o primeiro juízo de existência do INDÍCIO. A autoridade policial remete ao Ministério Público que, ao formular a acusação, manifesta o segundo juízo de existência do INDÍCIO. O juiz então decide pelo recebimento da acusação, formulando o terceiro juízo de existência do INDÍCIO.

Até então, apesar da constatação de três juízos de indícios da materialidade do crime e de sua autoria, o acusado ainda não teve oportunidade de defesa. Estabelece-se, em seguida, o curso processual, com o contraditório e ampla defesa. No final, o Juiz profere decisão condenatória que, na doutrina processual constitui a transformação dos indícios em reconhecimento da prova produzida. É o quarto juízo de culpa, quando os indícios foram convertidos em prova.

É preciso mais ainda para afastar o candidato duvidoso do acesso aos cargos de soberania nacional? Será que todo esse decurso processual ainda não produziu INDÍCIOS VEEMENTES para a salvaguarda do poder público?

Mas não é só. Se durante todo esse procedimento, houver fato incontestável que exclua a materialidade do delito ou a sua autoria, ainda cabe o recurso do habeas corpus, inclusive para os tribunais superiores. Se isso não ocorreu ou foi julgado no sentido da manutenção do processo, não há como desdizer a palavra do juiz monocrático e de todos os acusadores, sob o falso apanágio do erro humano.

Depois de que, se a sociedade exige para a profilaxia de seu poder público e para evitar a candidatura a cargos eletivos, não a CERTEZA, mas INDÍCIOS VEEMENTES de culpa da prática delituosa, não é possível dizer que o julgamento condenatório em primeira instância não seja suficiente. O raciocínio em contrário peca pelo excesso de zelo na proteção individual, em detrimento da coletividade. Repita-se: não é preciso a CERTEZA DA CULPA, mas INDÍCIOS VEEMENTES, para evitar a contaminação do poder.

No caso, não se conduz o raciocínio pelo princípio constitucional da presunção de inocência. O referido princípio constitui regra para a proteção do indivíduo contra o poder. A questão atual, ao contrário, é a proteção do poder, contra o indivíduo. O conflito de valores se dinamiza pela prevalência da intangibilidade do Estado, no confronto com o direito individual, por causa da supremacia do interesse público, tendo em vista a sua preservação. Só quando está em jogo a integridade do poder é que os seus valores prevalecem sobre os valores individuais.

* Edinaldo de Holanda Borges é subprocurador-geral da República

sábado, 10 de outubro de 2009

REFLEXÕES SOBRE A CRISE GLOBAL – CAPITAL FINANCEIRO X CAPITAL HUMANO

A crise econômica mundial tem revelado, diariamente, implicações que afetam a vida social e econômica das nações e seus impactos sobre suas respectivas populações. Os economistas das mais diversas tendências analisam e apontam soluções a serem adotadas pelos governantes, invariavelmente, utilizando recursos públicos, tendo em vista, revitalizar a saúde financeira das empresas e dos conglomerados financeiros, estes últimos, os grandes responsáveis pela crise.
Vários fatores são levantados como causas, a bolha hipotecária americana, especulação exagerada no mercado de derivativos, falta de regulação do mercado, além de outros.
Tudo analisado sob o ponto de vista do capital. E o lado humano? A crise vai provocar desemprego? É claro que sim, mas a prioridade é, supostamente, evitar uma crise sistêmica que atinja o coração do capitalismo selvagem.
Para um melhor entendimento desta lógica quero reprisar um fato ocorrido em 2005, quando o mundo vivia um quadro econômico de euforia, puxado pela locomotiva chamada China e com a economia americana apresentando índices positivos de crescimento, e a partir daí, fazermos uma reflexão de como decidem “os Senhores do mundo”.
Neste ano, em Washington, ocorreu uma reunião com os países que compõe o grupo do G7 (EUA, Japão, Alemanha, Inglaterra, França, Itália e Espanha) para discutir políticas para atenuar a fome na África e em alguns países do Sudeste Asiático. Ao final dos trabalhos, concluiu-se que seriam necessários investimentos de cerca de 250 bilhões de dólares para atenuar esta lamentável crise humanitária e salvar milhares de vidas humanas da fome e da destruição. Ao fim do encontro, o G7 resolveu que este valor era alto demais e inviável como forma de investimento, apesar do bom momento vivido pela economia mundial e da fartura desfrutada por seus habitantes. Definiu-se um valor infinitamente menor para dar uma satisfação a opinião pública mundial.
No ano passado, em plena crise, com as suas economias já apresentando quadros de recessão, EUA, Japão e a União Européia, injetaram dois trilhões e meio de dólares (dinheiro público) para salvar da falência grupos financeiros e grandes empresas que foram incompetentes na tarefa de gerir seus negócios.
Este é o retrato cruel deste modelo neoliberal que domina o mundo e é aplaudido pela maioria de nossa mídia que procura impor isto como verdade absoluta e universal. Chegaram a decretar o Fim da História (Ensaio de triste memória do inconsequente Fukuyama).
Nós, socialistas, acreditamos que este não é o único caminho. Fica clara a necessidade de profundas reformas dentro do marco capitalista para que depois, num segundo estágio, possamos elaborar um modelo em que os interesses do Capital Humano suplante os do Capital Financeiro. A união e a conscientização dos povos explorados do mundo é um dos caminhos.
Sonho? Nova utopia socialista? O futuro certamente nos dará esta resposta.
“Não temos nada a perder, exceto tudo” ( Albert Camus )

Claudio Leitão, economista, dirigente sindical, presidente do Dir. Municipal do PSOL – Cabo Frio-RJ.

UMA NOVA IDEIA CONDUZIDA ATRAVÉS DE UM VELHO MODELO

Sou leitor assíduo do Jornal Folha dos Lagos e tenho percebido, juntos com todos os seus leitores, o destaque que este periódico vem dando ao Projeto Cidade Viva, coordenado pelo Professor Paulo Cotias. Considero uma ótima iniciativa, através de um fórum coletivo, estabelecer debates para criar alternativas que visem o desenvolvimento de nossa cidade, principalmente, quando o poder público municipal apresenta sinais claros de omissão e incompetência ao longo dos últimos quinze anos no que tange a realização de políticas públicas que reduzam a grande desigualdade social aqui presente.
Entretanto, alguns fatos chamam a atenção quando se analisa o modelo que está sendo empregado para a elaboração do projeto. Nota-se, claramente, grande presença de autoridades municipais e estaduais participantes do fórum, convidados com pompa e circunstância e que são, na verdade, os mesmos representantes do poder público que até hoje não deram soluções a estas questões.
Percebe-se também, a presença de representantes das inúmeras associações de empresários, como Acia, Sinduscon, entre outras, que também tem responsabilidades pelo atual estado das coisas, devido às pífias iniciativas para a geração de projetos de desenvolvimento e pela falta de independência em relação aos mandatários de plantão no município.
Assim sendo, pergunto : Onde estão os representantes dos trabalhadores, sindicatos e dos movimentos sociais da cidade ? Será que os ilustres organizadores acham que estes segmentos não tem nada a colaborar com este projeto ?
O primeiro tema a ser tratado é exatamente “ Geração de Emprego e Renda “, e pasmem, não terá representantes dos trabalhadores no debate. Digo isso, porque não há durante as reportagens, nenhuma menção a convites aos principais interessados neste tema.
Não quero acreditar que o objetivo e dar um caráter oficialesco ao fórum convidando apenas Governo e empresários, deixando de lado setores mais plurais que representem melhor o conjunto da sociedade.
Não quero acreditar que será um debate elitista, onde as soluções deliberadas serão implantadas de cima para baixo, seguindo velho modelo que já se mostrou ineficiente.
Não quero acreditar que será uma peça de marketing para projetos pessoais de políticos que antes não apareciam por aqui e agora surgem com novas promessas, como foi o caso do Deputado Paulo Melo(PMDB) que anunciou de forma pouco concreta, um campus da UERJ para Cabo Frio, como se já não tivéssemos ouvido a mesma promessa várias vezes, ditas por outros que deixaram de merecer nossa credibilidade.
É preocupante o coordenador, que é filiado e foi candidato por um partido da base aliada do governo anunciar esta iniciativa e outra do prefeito da cidade que prometeu criar uma comissão para acompanhamento do projeto como realizações objetivas antes do início dos trabalhos.
Espero, com estas críticas, que faço de forma democrática, como cidadão e representante do PSOL , partido que tem a defesa dos trabalhadores como uma das suas principais bandeiras de luta despertar o senso crítico dos leitores e provocar o debate para além dos atuais participantes.


“ Eu também sou vítima de sonhos adiados e de esperanças dilaceradas, mas ainda assim sonho e espero na luta para que a vida continue “
( Martin Luther King )



Cláudio Leitão, economista, dirigente sindical, candidato a Prefeito pelo PSOL nas eleições em 2008.

JOGO DE CARTAS MARCADAS

A eleição presidencial de 2010 já é um fato marcante, noticiado diariamente na mídia nacional, até porque, nosso guia e presidente foi o primeiro a antecipar o debate anunciando a candidatura de sua Ministra Chefe da Casa Civil, a neopetista Dilma Rousseff. As pesquisas realizadas pelos diversos Institutos bombardeiam nossos corações e mentes com dados e projeções.
Nota-se claramente, a tentativa de polarizar a eleição entre dois partidos e dois candidatos : PT e PSDB, Dilma e Serra. A grande mídia nacional, representada pelos principais jornais, revistas e redes de televisão, faz um esforço concentrado para que a opinião pública absorva esta tese com uma verdade absoluta. Nada mais antidemocrático dentro de nossa pseudodemocracia.
A bem da verdade é preciso reconhecer que o PT e o PSDB são, hoje, os partidos de maior presença no cenário político nacional, mas de forma nenhuma apresentam projetos antagônicos, pelo contrário, descaracterizado, Lula e o PT de hoje deram continuidade ao modelo econômico e as relações políticas derivadas do governo FHC do PSDB, inclusive, tendo como aliados nesta governabilidade (sic) as mesmas figuras políticas : Sarney, Renan, Jader Barbalho, Romero Jucá, Roberto Jefferson e os fisiologistas e meretrizes de sempre do PP, PTB, PR e afins. Até os escândalos de corrupção foram parecidos.
Nenhuma reforma importante aconteceu na estrutura do Estado Brasileiro. Políticas públicas estruturantes nas áreas da Educação, Saúde, Saneamento e Habitação passaram ao largo destes dois governos. Ambos pagaram religiosamente e sem questionamento os juros da imoral dívida interna que, apesar da suposta competência, só faz crescer e comprometer o futuro das novas gerações de brasileiros. As alternativas a estas candidaturas para esta grande mídia são Ciro Gomes e Aécio Neves, ou seja, um pouco do mesmo.
A única candidatura independente que tem um projeto que se contrapõe a esta lógica em vários pontos importantes, a candidatura de Heloisa Helena – PSOL é completamente ignorada, embora ela esteja presente em todas as pesquisas de opinião com resultados bem razoáveis, a despeito de toda esta falta de exposição intencional praticadas por estes veículos de comunicação.
A parcialidade no tratamento das candidaturas é cristalina. Tais jornais, revistas, redes de televisão e analistas políticos tem o direito de terem suas preferências, mas simplesmente, não citar, tornar pública e comentar todas as possibilidades parece ser proposital, visando não dar “ asas “ a qualquer possibilidade real de mudança.
Uma das explicações para este fato é muita clara, tendo em vista, declarações de Heloisa Helena de que reduzirá, drasticamente, as verbas de publicidade do governo, entendendo que a boa propaganda governamental é obra pública, além de investimentos sociais, objetivando resgatar esta imensa dívida social que se acumula há décadas neste país e que os competentes e bem avaliados governos passados foram incapazes de resolver. Só este ano, Lula irá gastar cerca de 6 bilhões de reais em verbas de publicidade fazendo a festa destes patrióticos veículos de comunicação.
Existem outras razões para eles esconderam a candidatura Heloisa Helena do grande público, principalmente, das camadas mais humildes da população, mas eu deixo para a atenta reflexão de todos os leitores do blog.

“ Um sonho quando sonhado por muitos e ao mesmo tempo torna-se uma inevitável realidade.”
(Autor desconhecido)


Cláudio Leitão, é economista, dirigente sindical e foi candidato a prefeito pelo PSOL nas últimas eleições em 2008.

EMPRÉSTIMO AO FMI : UM VERDADEIRO ESCÁRNIO

O Governo empresta 10 bilhões de dólares ao FMI, comprando parte dos 500 bilhões em títulos desta instituição, que são emitidos para que o Fundo possa continuar emprestando e impondo aos países as suas políticas que se mostraram falidas pela crise global, como as privatizações e os cortes de gastos sociais. Portanto, ser credor do Fundo significa pegar os recursos que faltam as urgentes demandas sociais brasileiras para aplicar e fortalecer estas políticas comprovadamente equivocadas. O Fundo estava à beira da falência antes da crise e o nosso País está cumprindo o vergonhoso papel de ressuscitar esta instituição.
Este empréstimo chega a ser uma infâmia, justamente quando o Brasil se encontra em recessão técnica, configurada pela queda do PIB, queda da arrecadação tributária, sérios problemas sociais nos municípios, piora do quadro educacional, péssima qualidade da saúde pública, falta de recursos para repor perda dos aposentados e funcionários públicos, além de muitos outros problemas.
Enquanto a população enfrenta todas as facetas da recessão, os gastos com a dívida interna continuam sendo a prioridade. A dívida pública de janeiro a maio deste ano consumiu 82 bilhões de reais do orçamento, o que significa 5 vezes o gasto com saúde, 10 vezes o que se gastou com educação, 8 vezes o que se gastou com assistência social, e pasmem, 168 vezes o se gastou com reforma agrária.
Em todas as votações no Congresso Nacional, a base do Governo, leia-se : PT, PMDB, PR, PP, PSB, PDT, PC do B, tem demonstrado sua subserviência ao endividamento público, se recusando a aprovar projetos que aumentam as verbas para a saúde, como a Emenda Constitucional 29, o fim do fator previdenciário e o legítimo reajuste dos aposentados.
É importante relembrar também que esta mesma base governista aprovou a Reforma da Previdência ( que tirou direitos históricos dos aposentados), a Reforma Tributária ( para manter a DRU como instrumento utilizado para garantir o superávit primário que se destina, também, ao pagamento da dívida), a Lei de Falências ( que deu prioridade aos credores financeiros em detrimento aos direitos trabalhistas), e agora, quer aprovar o nefasto projeto das Fundações Estatais, que significa a privatização da saúde e de diversos serviços públicos fundamentais, além de precarizar as relações de trabalho dos possíveis contratados.
Ser agora credor do FMI significará, adicionalmente, prejuízos financeiros ao País, uma vez que os títulos do Fundo que renderão somente 0,46 % ao ano, serão comprados pelo Banco Central com os dólares das reservas cambiais que são adquiridos à custa de mais endividamento interno, que anualmente paga a taxa Selic, ou seja, 9,25% ao ano. Um grande negócio para o FMI e péssimo para o povo brasileiro.
A dívida pública continua sendo o centro dos problemas nacionais, constituindo-se num grande gargalo que impede o desenvolvimento e o crescimento do país em níveis compatíveis a nossa real necessidade, impedindo o acesso aos direitos básicos à saúde, educação de qualidade, aposentadoria digna, habitação e saneamento.
Estes fatos mostram claramente o viés neoliberal do Governo Lula, apesar do discurso do Presidente com preocupações sociais. Mostram também a semelhança com os oito anos de governo tucano de FHC, inclusive, no que tange aos sucessivos escândalos de corrupção e práticas políticas sem ética e sem transparência. O caso recente do Senado com participação política do Governo na defesa de José Sarney deixa clara esta conduta.
Cada vez fica mais evidente a necessidade de uma auditoria cidadã desta dívida que em 1994, quando FHC assumiu, era de 65 bilhões de reais e com Governo Lula em 2009, atinge a incrível cifra de 1 trilhão e quatrocentos milhões de reais, apesar de já termos pagos em juros mais de 1 trilhão de reais( 800 bilhões só nos seis anos de Lula). Significa uma transferência brutal de recursos públicos para o capital financeiro nacional e internacional, acumulando internamente esta monstruosa dívida social que a permanecer este modelo continuará sem uma solução efetiva.

“Apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la”
Bertold Brecht


Cláudio Leitão é economista, dirigente sindical e foi candidato a prefeito pelo PSOL nas eleições de 2008.

A PERGUNTA QUE AINDA NÃO FOI FEITA


Cabo Frio vive hoje um clima de total instabilidade política. O imbróglio jurídico-eleitoral entre Marquinho Mendes e Alair Correa domina as conversas nos bares e cafés da cidade. Entretanto, um outro assunto começa a perturbar a tranqüilidade dos cabofrienses, particularmente dos servidores públicos municipais : Os problemas de caixa da Prefeitura para honrar a folha de pagamentos dos funcionários.

O atual prefeito reeleito ( ainda não se sabe ao certo !!) e seus secretários, escorados pelos vereadores da base governista, tem dito na mídia local que o problema é da crise internacional e da conseqüente redução dos repasses dos royalties do petróleo. Estas pseudo-entrevistas ancoradas por profissionais (sic) da imprensa local altamente domesticados se dão num ambiente de total conforto, sem que haja nenhuma pergunta mais complicada ou que possa atrapalhar o discurso fácil de nossos representantes.

Entretanto, uma pergunta não tem sido feita : Porque justificar a dificuldade da folha de pagamentos com a queda dos repasses dos royalties se estes valores não podem ser utilizados para este fim?

A crise, é obvio, existe, mas seus impactos num município como Cabo Frio, em plena temporada de verão ainda não são sentidos. Basta ver as vendas do comércio local. Trata-se de uma grande desculpa esfarrapada para justificar verdadeiros desmandos com dinheiro público. Mesmo com esta redução o orçamento de Cabo Frio continua ser de dar inveja a qualquer município do seu porte. O problema é o modelo de gestão que é fisiológico, assistencialista, não prioriza políticas públicas adequadas e não dá a devida transparência aos gastos públicos.

É inacreditável como estes profissionais da imprensa local aceitam servir de escadas para permitir este tipo de embuste com a população de nossa cidade. Estes profissionais, com raras exceções, maculam a independência e a liberdade de informação, valores tão caros ao jornalismo.

Na verdade, todos nós até sabemos ou podemos imaginar os motivos desta omissão, mas isso não pode anestesiar nossa massa critica e nossa consciência. A sociedade de Cabo Frio precisa dar uma resposta a este tipo de jornalismo que não educa, não esclarece e que atua sempre em consonância com o poder, seja ele quem for.

Querem passar para a população que existe um luta política entre o Bem e o Mal, quando na verdade, os ditos cujos em questão, são farinhas do mesmo saco e representam o mesmo papel no cenário político.

“ O que mais preocupa não é o grito dos violentos, dos corruptos, dos desonestos, dos sem caráter e sem ética, o que mais preocupa é o silêncio dos bons “

Martin Luther King


Claudio Leitão, economista, dirigente sindical, candidato a prefeito pelo PSOL nas últimas eleições.

Poema da semana


"NA PRIMEIRA NOITE, ELES SE APROXIMAM
E COLHEM UMA FLOR EM NOSSO JARDIM.
E NÃO DIZEMOS NADA.

NA SEGUNDA NOITE, JÁ NÃO SE ESCONDEM,
PISAM AS FLORES, MATAM NOSSO CÃO.
E NÃO DIZEMOS NADA.

ATÉ QUE UM DIA, O MAIS FRÁGIL DELES,
ENTRA SOZINHO EM NOSSA CASA, ROUBA-NOS A LUA,
E, CONHECENDO NOSSO MEDO,
ARRANCA-NOS A VOZ DA GARGANTA.

E PORQUE NÃO DISSEMOS NADA
JÁ NÃO PODEMOS DIZER MAIS NADA."


Vladimir Maiakovski
Poeta russo

O QUE É CIDADANIA

Autora: Marcos Silvio de Santana



"Resumo

A história da cidadania confunde-se em muito com a história das lutas pelos direitos humanos. A cidadania esteve e está em permanente construção; é um referencial de conquista da humanidade, através daqueles que sempre lutam por mais direitos, maior liberdade, melhores garantias individuais e coletivas, e não se conformam frente às dominações arrogantes, seja do próprio Estado ou de outras instituições ou pessoas que não desistem de privilégios, de opressão e de injustiças contra uma maioria desassistida e que não se consegue fazer ouvir, exatamente por que se lhe nega a cidadania plena cuja conquista, ainda que tardia, não será obstada. Ser cidadão é ter consciência de que é sujeito de direitos. Direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade, enfim, direitos civis, políticos e sociais. Mas este é um dos lados da moeda. Cidadania pressupõe também deveres. O cidadão tem de ser cônscio das suas responsabilidades enquanto parte integrante de um grande e complexo organismo que é a coletividade, a nação, o Estado, para cujo bom funcionamento todos têm de dar sua parcela de contribuição. Somente assim se chega ao objetivo final, coletivo: a justiça em seu sentido mais amplo, ou seja, o bem comum.

Sumário:

Introdução – 1; A Cidadania na Antigüidade – 2; A Cidadania na Grécia Antiga – 3;

A Cidadania Romana – 4; Cidadania na Idade Média – 5; Cidadania na Idade Moderna – 6; Outras Considerações – 7; A Cidadania no Brasil – 7; Conclusão – 9; Referências Bibliográficas – 10.

INTRODUÇÃO

No discurso corrente de políticos, comunicadores, dirigentes, educadores, sociólogos e uma série de outros agentes que, de alguma maneira, se mostram preocupados com os rumos da sociedade, está presente a palavra cidadania. Como é comum nos casos em que há a superexploração de um vocábulo, este acaba ganhando denotações desviadas do seu estrito sentido. Hoje, tornou-se costume o emprego da palavra cidadania para referir-se a direitos humanos, ou direitos do consumidor e usa-se o termo cidadão para dirigir-se a um indivíduo qualquer, desconhecido.

De certa forma, faz sentido a mistura de significados, já que a história da cidadania confunde-se com a história dos direitos humanos, a história das lutas das gentes para a afirmação de valores éticos, como a liberdade, a dignidade e a igualdade de todos os humanos indistintamente; existe um relacionamento estreito entre cidadania e luta por justiça, por democracia e outros direitos fundamentais asseguradores de condições dignas de sobrevivência.

Expressão originária do latim, que tratava o indivíduo habitante da cidade (civitas), na Roma antiga indicava a situação política de uma pessoa (exceto mulheres, escravos, crianças e outros) e seus direitos em relação ao Estado Romano. No dizer de Dalmo Dallari:

“A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social”[1].

No Brasil, os primeiros esforços para a conquista e estabelecimento dos direitos humanos e da cidadania confundem-se com os movimentos patrióticos reivindicativos de liberdade para o País, a exemplo da inconfidência mineira, canudos e outros. Em seguida, as lutas pela independência, abolição e, já na república, as alternâncias democráticas, verdadeiros dilemas históricos que custaram lutas, sacrifícios, vidas humanas.

E hoje, a quantas anda a nossa cidadania? A partir da Constituição de 1988, novos instrumentos foram colocados à disposição daqueles que lutam por um País cidadão. Enquanto consumidor, o brasileiro ganhou uma lei em sua defesa – o CDC; temos um novo Código de Trânsito; um novo Código Civil. Novas ONGs que desenvolvem funções importantíssimas, como defesa do meio ambiente. A mídia, apesar dos seus tropeços, tem tido um papel relevante em favor da cidadania. E muitas outras conquistas a partir da Nova Carta.

Como o exemplo da Ação Cidadania Contra a Miséria e pela Vida, Movimento pela Ética na Política. Memorável a ação dos “caras-pintadas”, movimento espontâneo de jovens que contribuiu para o impeachment do presidente Collor. A Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, Mandado de Segurança entre outros, além da instituição do Ministério Público, importante instrumento na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Há um longo caminha a percorrer. É só ativar um pouco a nossa acuidade natural e veremos que estamos cercados de um sem número de mazelas que insistem em infestar a nossa sociedade. Os representantes que, mal acabam de se eleger, dão as costas para o eleitor e este não lhe nega a recíproca, deixando aqueles ainda mais à vontade para as suas rapinagens.

Uma pesquisa divulgada pelo Ibope[2] em 25.11.03 traz dados preocupantes sobre as nossas relações de cidadania. Indica que 56% dos brasileiros não têm vontade de participar das práticas capazes de influenciar nas políticas públicas. 35% nem tem conhecimento do sejam essas práticas e 26% acham esse assunto “chato demais” para se envolver com ele. Nem tudo está perdido: 44% dos entrevistados manifestaram algum interesse em participar para a melhoria das atividades estatais, e entendem que o poder emana do povo como está previsto na Constituição. A pesquisa anima, de forma até surpreendente, quando mostra que 54% dos jovens (entre 16 e 24 anos), têm interesse pela coisa pública. Interesse que cai progressivamente à medida que a idade aumenta. A pesquisa ajuda a desmontar a idéia que se tem de que o jovem é apático ou indiferente às coisas do seu país.

1. A CIDADANIA NA ANTIGÜIDADE

Em tempos recuados da História encontram-se sinais de lutas sociais que lembram bem a busca por cidadania. Bem tratado por Jaime Pinsky, apud Emiliano José[3], por volta do século VIII a.c. os Profetas Isaías e Amós pregavam em favor do povo e contra os opressores:

“cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem. Respeitai o direito, protegei o oprimido. Fazei justiça ao órfão, defendei a viúva”.

“Portanto, já que explorais o pobre e lhe exigis tributo de trigo, edificareis casas de pedra, porém não habitareis nelas, plantareis as mais excelentes vinhas, porém não bebereis do seu vinho. Porque eu conheço as vossas inúmeras transgressões e os vossos grandes pecados: atacais o justo, aceitais subornos e rejeitais os pobres à sua porta”.

1.1 A CIDADANIA NA GRÉCIA ANTIGA

Na Grécia de Platão e Aristóteles, eram considerados cidadãos todos aqueles que estivessem em condições de opinar sobre os rumos da sociedade. Entre tais condições, estava a de que fosse um homem totalmente livre, isto é, não tivesse a necessidade de trabalhar para sobreviver, uma vez que o envolvimento nos negócios públicos exigia dedicação integral. Portanto, era pequeno o número de cidadãos, que excluíam além dos homens ocupados (comerciantes, artesãos), as mulheres, os escravos e os estrangeiros. Praticamente apenas os proprietários de terras eram livres para ter o direito de decidir sobre o governo. A cidadania grega era compreendida apenas por direitos políticos, identificados com a participação nas decisões sobre a coletividade.

Citando Sabine, Quintão Soares[4] explica que, em consonância com a assertiva de que cidadania é um mecanismo de representação política que permite relacionamento pessoal entre governantes e governados e que esse paradigma assenta-se na instituições greco-romanas e sua complexa transição para a Idade Média, demonstra que os modernos conceitos de ideais políticos, como os de justiça, liberdade, governo constitucional e respeito às leis, surgiram de conceitos de pensadores helênicos sobre as instituições da Cidade-Estado.

Na Grécia antiga, toda a sociedade da civilização apresentava a dicotomia cidadão e não-cidadão. Lage de Resende e Morais, apud Wilba L. M. Bernardes[5], ensina que:

“A cidadania era para os gregos um bem inestimável. Para eles a plena realização do homem se fazia na sua participação integral na vida social e política da Cidade-Estado”. “...só possuía significação se todos os cidadãos participassem integralmente da vida política e social e isso só era possível em comunidades pequenas”.

Wilba L. M. Bernardes[6] refere-se a outros autores para esclarecer que no início da evolução ateniense só uma classe de cidadãos exercia a plenitude da cidadania (existia uma divisão censitária da sociedade); somente a partir das reformas de Clístenes (509 a.c.), essa cidadania foi estendida a todo cidadão ateniense, que poderia inclusive exercer qualquer cargo de governo. Também é a partir de Clístenes, segundo ensina Fustel de Coulanges, que a antiga aristocracia ateniense sofreu o seu mais duro golpe: Clístenes confirmou as reformas políticas de Sólon, introduziu também reformas na velha organização religiosa da sociedade ateniense: “A partir deste momento, não houve mais castas religiosas, nem privilégios de nascimento na religião ou na política”.

Celso Lafer, apud Mário Quintão[7], entende que a igualdade resulta da organização humana, que é o meio de igualizar as diferenças por intermédio das instituições. É o caso da polis, que tornava os homens iguais através da lei. Perder o acesso à esfera pública equivalia a privar-se da igualdade. O indivíduo, destituído da cidadania e submetido à esfera privada, não usufruía os direitos, que só podiam existir em função da pluralidade dos homens. A esfera privada, vinculada às atividades de sobrevivência do indivíduo, era o espaço de sujeição no qual a mulher, o escravo e os filhos, destituídos de direitos, estavam sob o domínio despótico do chefe de família e a proteção das divindades domésticas.

Lembra Wilba Bernardes que o Estado à época de Roma e Grécia, se é que podem assim ser chamados, não tinha a feição que hoje lhe é conferida; era mais um prolongamento da família, pois esta era a base da sociedade. E sendo assim, o indivíduo encontrava-se completamente absorvido pelo Estado ou pela Cidade-Estado. Aos cidadãos atenienses eram reservados os direitos políticos. Os cidadãos formavam o corpo político da cidade, daí a faculdade de tomarem parte das Assembléias, exercerem a magistratura e proporcionarem a justiça.

1.2 A CIDADANIA ROMANA

Em Roma, também se encontra, patente, a idéia de cidadania como capacidade para exercer direitos políticos e civis e a distinção entre os que possuíam essa qualidade e os que não a possuíam. A cidadania romana era atribuída somente aos homens livres, mas nem todos os homens livres eram considerados cidadãos. Segundo Wilba Bernardes, em Roma existiam três classes sociais: os patrícios (descendentes dos fundadores), os plebeus (descendentes dos estrangeiros) e os escravos (prisioneiros de guerra e os que não saldavam suas dívidas). Existiam também os clientes, que eram, segundo informam Pedro e Cáceres[8], homens livres, dependentes de um aristocrata romano que lhes fornecia terra para cultivar em troca de uma taxa e de trabalho.

Em princípio, a diferença entre patrícios e plebeus é que estes, apesar de homens livres, não eram considerados cidadãos, privilégio dos patrícios, que gozavam de todos os direitos políticos, civis e religiosos[9]. Isso deu motivo a várias lutas internas, entre patrícios e plebeus. Após a reforma do Rei Sérvio Túlio, os plebeus tiveram acesso ao serviço militar e lhes foram assegurados alguns direitos políticos. Só a partir de 450 a.C., com a elaboração da famosa Lei das Doze Tábuas, foi assegurada aos plebeus uma maior participação política, o que se deveu em muito à expansão militar romana. O Direito Romano regulava as diferenças entre cidadãos e não-cidadãos. O direito civil (ius civile) regulamentava a vida do cidadão, e o direito estrangeiro (ius gentium) era aplicado a todos os habitantes do império que não eram considerados cidadãos.

Ensina Alves, no dizer de Wilba Bernardes, que:

“Desde os fins da República, a tendência de Roma é no sentido de estender, paulatinamente, a cidadania a todos os súditos do Império. Assim, em 90 a.c., a lex Iulia a concedeu aos habitantes do Latium; um ano depois, a lex Plautia Papiria a atribuiu aos aliados de Roma; e, em 49 a.c., a lex Roscia fez o mesmo com relação aos habitantes da Gália Transpadana”[10].

Em 212 d.C., Caracalla, na célebre Constitutio Antoniniana, concedeu a cidadania a quase todos os habitantes do Império. As exceções que subsistiram desapareceram com Justiniano.

Na lição de Mário Quintão[11], vê-se que o Direito Romano, apesar de proteger as liberdades individuais e reconhecer a autonomia da família com o pátrio poder, não assegurava a perfeita igualdade entre os homens, admitindo a escravidão e discriminando os despossuídos. Ao lado da desigualdade extrema entre homens livres e escravos, o Direito Romano admitia a desigualdade entre os próprios indivíduos livres, institucionalizando a exclusão social.

1.3 A CIDADANIA NA IDADE MÉDIA

Com a decadência do Império Romano, e adentrando a Idade Média, ocorrem profundas alterações nas estruturas sociais. O período medieval é marcado pela sociedade caracteristicamente estamental, com rígida hierarquia de classes sociais: clero, nobreza e servos (também os vilões e os homens livres).

A Igreja cristã passou a constituir-se na instituição básica do processo de transição para o tempo medieval. As relações cidadão-Estado, antes reguladas pelo Império, passam a controlar-se pelos ditames da Igreja cristã. A doutrina cristã, ao alegar a liberdade e igualdade de todos os homens e a unidade familiar, provocou transformações radicais nas concepções de direito e de estado.

Para Mário Quintão, o desmoronamento das instituições políticas romanas e o fortalecimento do cristianismo ensejaram uma reestruturação social que foi dar-se no feudalismo, cujas peculiaridades diferiam consoante seus aspectos regionais. O feudalismo, considerado “idade das trevas”, configura-se pela forma piramidal caracterizada por específicas relações de dependência pessoal (vassalagem), abrangendo em sua cúpula rei e suserano e, em sua base, essencialmente, o campesinato.

Essa relação de dependência pessoal de obrigações mútuas originava-se de ato sacramental e solene e que apresentava duas vertentes: o vassalo, em troca de proteção e segurança, inclusive econômica, oferecia fidelidade, trabalho e auxílio ao suserano, que, reciprocamente, investia o vassalo no benefício, elemento real e econômico dessa relação feudal.

Na época medieval, em razão dessa índole hierarquizada das estruturas em classes sociais, dilui-se o princípio da cidadania. O relacionamento entre senhores e vassalos dificultava bastante a definição desse conceito. O homem medieval, ou era vassalo, ou servo, ou suserano; jamais foi cidadão. Os princípios de cidadania e de nacionalidade dos gregos e romanos estariam “suspensos” e seriam retomados com a formação dos Estados modernos, a partir de meados do século XVII.

1.4 A CIDADANIA NA IDADE MODERNA

Os primeiros sinais de desmoronamento do sistema que caracterizou o medievo foram a privatização do poder. Hannah Arendt, citada por Quintão[12], diz que:

“A queda da autoridade política foi precedida pela perda da tradição e pelo enfraquecimento dos credos religiosos institucionalizados; foi o declínio da autoridade religiosa e tradicional que talvez tenha solapado a autoridade política, e certamente provocado a sua ruína”

Com o fim do feudalismo e a ocorrência da formação dos Estados nacionais, a sociedade, ainda formada e organizada em clero, nobreza e povo, volta a ter uma centralização do poder nas mãos do rei, cuja autoridade abrangia todo o território e era reconhecida como legal pelo povo. Língua, cultura e ideais comuns auxiliaram a formação desses Estados Nacionais.

Já no final da Idade Moderna, observa-se um sério questionamento das distorções e privilégios que a nobreza e clero insistiam em manter sobre o povo. É aí que começam a despontar figuras que marcariam a História da cidadania, como Rousseau, Montesquieu, Diderot, Voltaire e outros. Esses pensadores passam a defender um governo democrático, com ampla participação popular e fim de privilégios de classe e ideais de liberdade e igualdade como direitos fundamentais do homem e tripartição de poder. Essas idéias dão o suporte definitivo para a estruturação do Estado Moderno. Lembrando que alguns desses ideais já teriam sido objeto de discussão quando do início do constitucionalismo inglês em 1215, quando o rei João Sem Terra foi forçado a assinar a Magna Carta.

As modernas nações, governos e instituições nacionais surgiram a partir de monarquias nacionais formadas pela centralização ocorrida no desenrolar da Idade Moderna. Segundo Wilba Bernardes “desde o momento em que o Estado moderno começa a se organizar, surge a preocupação de definir quais são os membros deste Estado, e, dessa forma, a idéia atual de nacionalidade e de cidadania só será realmente fixada a partir da Idade Contemporânea”[13].

Citado por Quintão[14], J. M. Barbalet diz que:

“Desde o advento do Estado liberal de direito, a base da cidadania refere-se à capacidade para participar no exercício do poder político mediante o processo eleitoral. Assim, a cidadania ativa liberal derivou da participação dos cidadãos no moderno Estado-nação, implicando a sua condição de membro de uma comunidade política legitimada no sufrágio universal, e, portanto, também a condição de membro de uma comunidade civil atrelada à letra da lei”.

1.5 OUTRAS CONSIDERAÇÕES

A história da cidadania mostra bem como esse valor encontra-se em permanente construção. A cidadania constrói-se e conquista-se. É objetivo perseguido por aqueles que anseiam por liberdade, mais direitos, melhores garantias individuais e coletivas frente ao poder e a arrogância do Estado. A sociedade ocidental nos últimos séculos andou a passos largos no sentido das conquistas de direitos de que hoje as gerações do presente desfrutam.

O exercício da cidadania plena pressupõe ter direitos civis, políticos e sociais e estes, se já presentes, são fruto de um longo processo histórico que demandou lágrimas, sangue e sonhos daqueles que ficaram pelo caminho, mas não tombados, e sim, conhecidos ou anônimos no tempo, vivos no presente de cada cidadão do mundo, através do seu “ir e vir”, do seu livre arbítrio e de todas as conquistas que, embora incipientes, abrem caminhos para se chegar a uma humanidade mais decente, livre e justa a cada dia.

2 A CIDADANIA NO BRASIL

A história da cidadania no Brasil está diretamente ligada ao estudo histórico da evolução constitucional do País. A Constituição imperial de 1824 e a primeira Constituição republicana de 1891 consagravam a expressão cidadania. Mas, a partir de 1930, observa Wilba Bernardes[15], ocorre uma nítida distinção nos conceitos de cidadania, nacionalidade e naturalidade. Desde então, nacionalidade refere-se à qualidade de quem é membro do Estado brasileiro, e o termo cidadania tem sido empregado para definir a condição daqueles que, como nacionais, exercem direitos políticos.

A história da cidadania no Brasil é praticamente inseparável da história das lutas pelos direitos fundamentais da pessoa: lutas marcadas por massacres, violência, exclusão e outras variáveis que caracterizam o Brasil desde os tempos da colonização. Há um longo caminho ainda a percorrer: a questão indígena, a questão agrária, posse e uso da terra, concentração da renda nacional, desigualdades e exclusão social, desemprego, miséria, analfabetismo, etc.

Entretanto, sobre a cidadania propriamente dita, dir-se-ia que esta ainda engatinha, é incipiente. Passos importantes já foram dados. A segunda metade do século XX foi marcada por avanços sócio-políticos importantes: o processo de transição democrática, a volta de eleições diretas, a promulgação da Constituição de 1988 “batizada” pelo então presidente da constituinte Ulysses Guimarães de a “Constituição Cidadã”. Mas há muito que ser feito. E não se pode esperar que ninguém o faça senão os próprios brasileiros. A começar pela correção da visão míope e desvirtuada que se tem em ralação a conceitos, valores, concepções. Deixar de ser uma nação nanica de consciência, uma sociedade artificializada nos seus gostos e preferências, onde o que vale não vale a pena, ou a mediocridade transgride em seu conteúdo pelo arrastão dos acéfalos. Tem-se aqui uma Constituição cidadã, mas falta uma “Ágora” onde se possa praticar a cidadania, e tornar-se, cada brasileiro em um ombudsman de sua Pátria.

É inegável que o Brasil é um País injusto, ou melhor, a sociedade brasileira é extremamente desigual. Basta ver os números do IBGE para indagarmos os motivos de tantos contrastes, de tão perversos desequilíbrios. E o que é pior: a cada pesquisa, as diferenças aumentam, a situação de ricos e pobres que parecem migrar para extremos opostos... nessa escala de aprofundamento das injustiças sociais, ao contrário do que desejava Ulysses Guimarães em seu discurso na Constituinte em 27 de julho de 1988:

“essa será a Constituição cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros, vítimas da pior das discriminações: a miséria”. “ Cidadão é o usuário de bens e serviços do desenvolvimento. Isso hoje não acontece com milhões de brasileiros, segregados nos guetos da perseguição social”.

Por que tudo isso continua? Falta vontade dos governos? Ao que parece, todos se preocupam, reclamam e se incomodam com esta triste realidade, mas, ações consistentes, de efeitos estruturais e capazes de mudar os rumos das tendências sócio-econômicas da sociedade brasileira não se podem vislumbrar, ainda. É vontade geral manifesta que haja um mínimo de justiça social. Entretanto, por que não fazer valer esse desejo da maioria, se este é um País democrático? Será que se atribui muita importância, ou se respeitam demais as chamadas minorias? As elites?

As questões são mais profundas. As soluções demandam “garimpagem” com muito tino e sabedoria, requerem grande esforço social conjunto. Não servem aqueles apelos carregados de emoção em busca de respostas emergentes e imediatas, que passam logo e deixam a população ainda mais frustrada, mais descrente. Há que se pensar algo mais racional, profundo e que tenha começo, meios e finalidades claros, objetivos e sem a essência obrigatória do curto prazo.

Por falar em começo, que tal pensar-se em construir uma verdadeira cidadania? Aliás, construir a cidadania dos brasileiros. Fala-se tanto das qualidades incomuns dos pátrios. Povo alegre, generoso, criativo, pacífico, solidário, sensível ante os problemas alheios; povo capaz de reagir rápida e inteligentemente, ante a situações adversas. Porém, falta a cidadania... Esta, sim, é uma qualidade da qual não prescinde um povo que se diz democrático. Alain Touraine[16] vê a liberdade como a primeira das condições necessárias e suficientes à sustentação democrática. A outra condição para uma democracia sólida é a cidadania.

Para que haja democracia é necessário que governados queiram escolher seus governantes, queiram participar da vida democrática, comprometendo-se com os seus eleitos, apontando o que aprova e o que não aprova das suas ações. Assim, vão sentir-se cidadãos. Isto supõe uma consciência de pertencimento à vida política do país. Querer participar do processo de construção dos destinos da própria Nação. Ser cidadão é sentir-se responsável pelo bom funcionamento das instituições. É interessar-se pelo bom andamento das atividades do Estado, exigindo, com postura de cidadão, que este seja coerente com os seus fundamentos, razoável no cumprimento das suas finalidades e intransigente em relação aos seus princípios constitucionais.

O exercício do voto é um ato de cidadania. Mas, escolher um governante não basta. Este precisa de sustentação para o exercício do poder que requer múltiplas decisões. Agradáveis ou não, desde que necessárias, estas têm de ser levadas a cabo e com a cumplicidade dos cidadãos. Estes não podem dar as costas para o seu governante apenas e principalmente porque ele exerceu a difícil tarefa de tomar uma atitude impopular, mas necessária, pois, em muitos momentos, o governante executa negócios que, embora absolutamente indispensáveis, parecem estranhos aos interesses sociais. É nessas ocasiões que se faz necessário o discernimento, próprio de cidadão consciente, com capacidade crítica e comportamento de verdadeiro “também sócio” do seu país.

Ser cidadão é ter consciência de que é sujeito de direitos. Direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade de direitos, enfim, direitos civis, políticos e sociais. Mas este é um dos lados da moeda. Cidadania pressupõe também deveres. O cidadão tem de ser cônscio das suas responsabilidades enquanto parte integrante de um grande e complexo organismo que é a coletividade, a nação, o Estado, para cujo bom funcionamento todos têm de dar sua parcela de contribuição. Somente assim se chega ao objetivo final, coletivo: a justiça em seu sentido mais amplo, ou seja, o bem comum.

3. CONCLUSÃO

O termo cidadania parece ter caído nas graças daqueles que têm na comunicação o instrumento de trabalho, como políticos, dirigentes, comunicadores, sociólogos e outros profissionais que, de alguma forma, interagem no meio social. Em seu ensaio a Veja, edição de 22/10/03, Roberto Pompeu de Toledo, ao fazer uma crítica ao comportamento do brasileiro, quando este se julga “estar por cima” e usa da impontualidade como meio de dominação, refere-se à pontualidade como expressão de igualitarismo. E acrescenta: “É, para usar detestável palavrão em voga, uma manifestação de ‘cidadania’. Na pontualidade, duas pessoas chegam junto.”. Considerada palavra “gasta”, ou não, o fato é que a cidadania é parâmetro balizador da história do homem enquanto ser social. Mesmo que, inconscientemente, o homem, na sua caminhada ao longo da História, sempre manteve a cidadania como questão central das suas lutas, como se verifica ao se recuar nos primórdios da humanidade.

A luta pela cidadania estava presente no profetismo hebreu. Os contemporâneos de Aristóteles e Platão organizavam-se para a prática da cidadania. A Roma de Cícero, através do Direito, da civitas, contribuiu significativamente na discussão dos direitos civis e políticos do cidadão. Essas histórias de lutas humanas em busca de reconhecimento de direitos do homem como cidadão, passa também pelo medievo, onde deixam vestígios os mais profundos. Em seguida, pelas revoluções burguesas, pelas lutas sociais dos séculos XIX e XX e até nossos dias. A auto-afirmação continua sendo perseguida, dia a dia, através de incansáveis batalhas contra todo tipo de iniqüidades, injustiças, opressão, etc., perversões que insistem em obstruir as ações humanas em prol de uma sociedade mais igualitária e feliz.

A história da cidadania confunde-se em muito com a história das lutas pelos direitos humanos. A cidadania esteve e está em permanente construção; é um referencial de conquista da humanidade, através daqueles que sempre buscam mais direitos, maior liberdade, melhores garantias individuais e coletivas, e não se conformam frente às dominações arrogantes, seja do próprio Estado ou de outras instituições ou pessoas que não desistem de privilégios, de opressão e de injustiças contra uma maioria desassistida e que não se consegue fazer ouvir, exatamente por que se lhe nega a cidadania plena cuja conquista, ainda que tardia, não será obstada.

4. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, B. Falta de informação limita participação popular. Cidadania na Internet. Rio de Janeiro, nov. 2003. Disponível em http://www.cidadania.org.br/conteudo.asp. Acesso em 03.12.2003.

BERNARDES, W. L. M. Da nacionalidade: Brasileiros natos e naturalizados. 1.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1995.

DALLARI, D. A. Direitos Humanos e Cidadania. 1.ed. São Paulo: Moderna, 1998.

EMILIANOJOSE. História da Cidadania – Uma trilha de lágrimas. Site Pessoal: Salvador, jul. 2003. Disponível em http://www.emilianojose.com.br/artigos.php. Acesso em 29.11.2003.

PEDRO, A.; CÁCERES, F. História Geral. 2.ed. São Paulo: Moderna, 1996.

POMPEU DE TOLEDO, R. O relógio avariado do Planalto. Veja, São Paulo, n. 42, p. 162. out. 2003.

QUINTÃO, S. M. L. Teoria do Estado. 1.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

TOURAINE, A. Crítica da Modernidade. O que é democracia?. 6.ed. São Paulo: Vozes, 2000.

[1] DALLARI, D.A. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Moderna, 1998. p.14

[2] BARBOSA, B. Falta de informação limita participação popular. Cidadania na Internet. Rio de Janeiro, nov. 2003. Disponível em http://www.cidadania.org.br/conteudo.asp. Acesso em 03.12.2003.

[3] EMILIANOJOSÉ. História da Cidadania – Uma trilha de lágrimas. Site Pessoal: Salvador, jul. 2003. Disponível em http://www.emilianojose.com.br/artigos.php. Acesso em 01.12.2003.

[4] QUINTÃO, S. M. L. Teoria do Estado. 1.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 230p.

[5] BERNARDES, W. L. M. Da nacionalidade: Brasileiros natos e naturalizados. 1.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. 23p.

[6] BERNARDES, W. L. M. Op. Cit. 25p, nota 12.

[7] QUINTÃO, S. M. L. Op. Cit., 232p.

[8] PEDRO, A.; CÁCERES, F. História Geral. 2.ed. São Paulo: Moderna, 1996.

[9] A condição de cidadão era invejada: Quem não era cidadão romano não era considerado marido ou pai; não podia ser legalmente proprietário ou herdeiro. Tal era o valor do título de cidadão romano, que sem ele ficava-se fora do direito, e com ele passava-se a fazer parte da sociedade regular (Fustel de Coulanges, apud Wilba L. M. Bernardes, op. Cit., 26p).

[10] BERNARDES, W. L. M. Op. Cit., 27p.

[11] QUINTÃO. S. M. L. Op. Cit., 241p.

[12] QUINTÃO, S. M. L. Op. Cit., 256p.

[13] BERNARDES, W. L. M. Op. Cit., 30p.

[14] QUINTÃO, S. M. L. Op. Cit., 257p.

[15] BERNARDES, W. L. M. Op. Cit., 15p.

[16] TOURAINE, A. Crítica da Modernidade. O que é democracia? 6.ed. São Paulo: Vozes, 2000. 348p."

Artigo retirado do site: http://www.advogado.adv.br/estudantesdireito/fadipa/marcossilviodesantana/cidadania.htm