Na primeira noite eles se aproximam
E roubam uma flor em nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem,
Pisam nas flores, matam o nosso cão.
E não dizemos nada.
Até que um dia o mais frágil deles,
Entra sozinho em nossa casa,
Rouba-nos a lua, e conhecendo o nosso medo,
Arranca-nos a voz da garganta.
E porque não dissemos nada
Já não podemos dizer mais nada.
Vladimir Maiakovsky
Poeta russo
"UMA IDEIA TORNA-SE UMA FORÇA MATERIAL QUANDO GANHA AS MASSAS ORGANIZADAS".
Karl Marx
quarta-feira, 23 de junho de 2010
Qual reforma tributária?
Economia e Infra-Estrutura
Paulo Kliass
Qui, 17 de junho de 2010 12:42
ImpostosPodem anotar aí! Com a aproximação das eleições, voltarão ao centro dos debates alguns temas recorrentes em nosso País. Reforma tributária, reforma política, reforma previdenciária, reforma administrativa, redefinição do pacto federativo, entre tantos outros.
Sem dúvida, trata-se de elementos sensíveis e significativos de estruturação da sociedade brasileira, na maioria dos casos com amarrações de ordem constitucional. Ou seja, para implementar alguma mudança, faz-se necessário que o Congresso aprove um tipo de medida chamada Proposta de Emenda Constitucional - PEC. E a própria Carta Magna de 1988 prevê que as alterações em seus dispositivos só sejam efetuadas por votação com maioria de 3/5 dos congressistas e com 2 votações em cada uma das Casas, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados. Aliás, uma justa preocupação dos constituintes em evitar que os avanços conquistados com a Carta Cidadã pudessem ser objeto de retrocesso político apenas com votações ordinárias no trâmite legislativo, que às vezes ocorrem com o plenário vazio e apenas contando com os votos das lideranças partidárias.
Mencionar a necessidade de reformas passou a ser uma verdadeira panacéia para todos os males de nossa sociedade. Em princípio, todas as forças políticas parecem estar de acordo a respeito da necessidade de promover mudanças. No entanto, o assunto fica complicado quando se passa a debater os conteúdos e os sentidos das alterações. As questões são polêmicas e os interesses em jogo se revelam bastante contraditórios. E a dificuldade em se reunir uma tal hegemonia parlamentar (60% dos votos presentes) em torno de uma linha de transformação faz com que as mudanças substantivas sejam raras.
Neste artigo vamos tentar localizar o equilíbrio de forças e os interesses em torno da reforma tributária. Imagino que não haverá força política ou grupo partidário que se declare plenamente satisfeito com os dispositivos do Título VI, Capítulo I da Constituição, que trata do Sistema Tributário Nacional (arts. 145 a 162). No entanto, é necessário compreender bem quais são os sentidos das diferentes linhas de reforma de nosso sistema de tributos.
Vez por outra nos vemos com artigos e campanhas contra a tão propalada "carga tributária excessiva", que "inviabiliza a ação empresarial e encarece o custo Brasil". Apesar de ser verdadeiro o argumento do crescimento do total de tributos em relação ao PIB ocorrido ao longo dos últimos anos, a questão é mais complexa do que simplesmente adotar a redução dos impostos como solução para "destravar as amarras que impedem o empreendedorismo". Um fenômeno, normalmente "esquecido" no debate, é que houve também, no mesmo período, um grande crescimento das despesas orçamentárias de caráter financeiro, em razão do patamar elevado da taxa de juros imposto pela política monetária ortodoxa. E esse é um dos fatores que contribui para explicar a atual carga tributária.
O primeiro ponto a destacar é a respeito da injustiça que caracteriza a estrutura tributária em nosso País. Os economistas costumam classificar os modelos tributários em dois tipos: i) progressivos e ii) regressivos. Os primeiros seriam característicos de sociedades que optam por taxar mais aqueles que mais têm patrimônio, mais consomem ou recebem renda mais elevada. São considerados os modelos de maior justiça social. No segundo caso - o regressivo, o modelo é perverso em termos de desigualdade sócio-econômica: pagam mais tributos as famílias ou os indivíduos que possuem menor patrimônio, consomem menos ou recebem menor renda.
Não precisa ser especialista em matéria tributária para ter a sensibilidade de perceber que a estrutura tributária brasileira é altamente regressiva. A população mais pobre paga, proporcionalmente, muito mais tributos do que as camadas mais abastadas da elite. E o mais interessante é que aqueles que tomam as iniciativas dos movimentos contra os impostos são justamente os que mais se beneficiam do modelo regressivo aqui existente.
E tal característica - a regressividade - se combina a outra, que agrava ainda mais a população de menor renda. Trata-se da distinção entre tributos diretos e indiretos. Os primeiros são aqueles que incidem diretamente sobre o contribuinte, que é quem arca com o ônus tributário. É o caso do imposto de renda, dos impostos sobre imóveis, entre outros. Já os impostos indiretos são aqueles recolhidos por um contribuinte, mas cujo ônus fica com outro. E aqui, outra vez, revela-se toda a face da regressividade. No Brasil são os exemplos típicos de imposto indireto o ICMS estadual, o IPI federal e outros. São tributos que as empresas recolhem ao fisco no momento da produção das mercadorias ou na venda/comercialização de bens e serviços. O grande "xis" da questão é que os encargos tributários são repassados aos preços e o consumidor é o verdadeiro "contribuinte" de fato, na ponta final do consumo.
Imagine-se, assim, a cesta de consumo de uma família que esteja localizada na base da pirâmide social. Todos os bens e serviços adquiridos ao longo do mês já têm embutidos no seu preço algo em torno de 30% de tributos. Em geral, ao passar pelo caixa do supermercado as mercadorias contêm, no mínimo, um percentual relativo ao IPI e ao ICMS. Assim quem compra um litro de leite, um pão francês, um quilo de farinha e um saco de café, por exemplo, paga o mesmo valor de impostos, independentemente de seu nível de renda ou classe social. Ao quitar a fatura de energia elétrica, de telefonia, de água, ao pagar a passagem do ônibus e outros serviços públicos ou privados, o mesmo fenômeno se repete: os pobres pagam as mesmas alíquotas do que os que recebem maior renda.
Com relação ao imposto de renda das pessoas físicas, o modelo é também regressivo. As alíquotas passam a incidir apenas para quem tem renda mensal superior a R$1.500 - os que recebem menos são isentos desse imposto. E elas variam de 7,5% a 27,5% sobre a renda recebida. O detalhe é que a alíquota máxima, que em princípio deveria incidir sobre as faixas mais altas, é a mesma para todos os contribuintes com renda superior a R$3.740. Ou seja, o modelo reconhece que o contribuinte que tem uma renda mensal de R$4.000 deva ser objeto de uma alíquota maior que o que recebe R$2.000. Mas quem recebe valores de R$100.000 por mês, por exemplo, tem o mesmo tratamento tributário do que aquele que recebe R$5.000 - ambos estão na mesma faixa de renda...
Isso para não mencionar todas as outras formas de se reduzir o valor do imposto de renda efetivamente pago, por meio de deduções com despesas com educação, saúde, previdência privada e outros mecanismos aos quais a população de baixa renda não tem acesso.
O discurso do liberalismo econômico radicalizado procura demonizar a presença do Estado na economia e, com ele, vem a postura raivosa contra a suposta "sanha arrecadadora" do leão. Porém, é importante observar que a função de recolhimento de impostos, que se atribui ao poder público, decorre do desenho institucional das sociedades há vários séculos: a necessidade de construir estruturas de serviços públicos e oferecer os meios permanentes de acesso à maioria da população aos mesmos. E aqui vem a lista já bem conhecida de sempre: saúde, educação, assistência social, previdência social, transportes, serviços de justiça e cidadania, transportes, energia, comunicações, etc. Por outro lado, a arrecadação de impostos cumpre com outra função relevante: os recursos arrecadados operam como fonte para redução das desigualdades sociais, econômicas e regionais, com o objetivo de promover a coesão do conjunto da sociedade.
E para cumprir com tais missões, o Estado necessita contar com recursos, os quais arrecada da sociedade por meio dos tributos. E aqui vale uma observação importante: em nosso País, o termo tributo é utilizado no sentido amplo, lato sensu. Na verdade, nesse conjunto estão englobados os impostos, as taxas e as contribuições recolhidos pelos 3 níveis da administração: federal, estadual e municipal.
ImpostosAtualmente, a carga tributária no Brasil situa-se em torno de 35%. Para chegar a esse índice, a metodologia recomenda utilizar as informações da Contabilidade Nacional do IBGE. Assim, verifica-se a participação do total de tributos no valor do PIB. Nesse montante incluem-se também as arrecadações de caráter previdenciário (inclusive do FGTS), que representam quase 10% do PIB. Os tributos sobre os bens e serviços (produção e consumo) representam por volta de 15%. Os tributos sobre renda, propriedade e capital representariam também por volta de 10%. Ora, se a proposta é a tão propalada redução do volume de impostos, é preciso que apontem de onde pretendem retirar a tributação. E verificar quais os setores seriam prejudicados na hora do Estado contar com menos recursos para cumprir com suas funções básicas.
Atenção especial deve ser dada às idéias de alterar o mecanismo de financiamento da Previdência Social, o INSS. Vira e mexe volta a sugestão de desonerar a folha de pagamento, substituindo-a com soluções miraculosas, como a proposta de incidência de uma alíquota sobre o faturamento das empresas. Em essência, sempre o antigo questionamento neoliberal quanto ao modelo de seguridade social pública e a gulosa tentação de transformar esse enorme volume de recursos em massa a ser movimentada pelo mercado financeiro.
As considerações apontadas até aqui não podem significar, por outro lado, uma postura conformista de nossa parte no que se refere à forma como o Estado brasileiro realiza seus dispêndios. É sabido que a administração pública gasta mal, principalmente no que se refere aos serviços prestados à população de mais baixa renda. Estruturas antiquadas, vícios do patrimonialismo, características culturais que tendem a favorecer a corrupção, dificuldades institucionais na relação do pacto federativo (União, Estados e Municípios). Os recursos existem, mas muitas vezes não "chegam" na ponta, como diz expressão popular carregada de eufemismo.
Em suma, a qualidade do nosso gasto não corresponde à expectativa dos serviços oferecidos, ainda mais se levarmos em conta que possuímos um índice de arrecadação de impostos sobre o PIB mais elevado do que a média dos países em desenvolvimento. Mas a busca de solução passa por aperfeiçoamento e melhoria da despesa pública e não pela redução da carga tributária!
Um elemento essencial para o aprimoramento de nosso modelo tributário refere-se à criação do Imposto sobre Grandes Fortunas - IGF. A maioria da população talvez desconheça o fato, mas essa foi uma recomendação dos constituintes ainda nos idos de 1988 e consta do inc. VII, do art. 153 da Constituição. Porém, passados 22 anos, a lei complementar criando o tributo portador de inequívoca justiça social ainda não foi aprovada pelo Congresso Nacional.
A ironia da história é que há vários projetos em tramitação no legislativo dando forma ao IGF. O primeiro, de autoria do então Senador Fernando Henrique Cardoso, já foi aprovado pelo Senado e encontra-se na Câmara dos Deputados. Mais recentemente, em 2008, a bancada do PSOL apresentou versão mais atualizada para o referido imposto. Apesar da importância da medida, sua aprovação dependeria de uma grande mobilização na base da sociedade, uma vez que a correlação de forças no interior do Congresso não parece muito favorável a tal mudança.
Ainda no campo da tributação sobre o patrimônio, há medidas mais simples de implementação e que não dependem de alteração constitucional. É o caso da instituição do IPVA sobre iates de luxo e jatos executivos, ainda generosamente excluídos da cobrança, uma vez que há decisão do STF que restringe o conceito de "veículo automotor" apenas àqueles de circulação terrestre. Além disso, a cobrança do Imposto Territorial Rural - ITR está longe de ser implementada de maneira efetiva por todo o território nacional. Não obstante a imensidão de nossas áreas agrícolas e da relevância econômica do agronegócio, o ITR representa apenas 0,1 % do total da arrecadação federal, sendo o tributo de menor valor recolhido pela União.
Outra dificuldade para aprovar as PECs de reforma tributária diz respeito ao pacto federativo, ou seja, às sensíveis relações entre a União, os Estados (e o DF) e os Municípios. Apesar da Constituição ter delegado a Estados e Municípios uma série de atribuições em termos de serviços públicos, a grande capacidade arrecadadora do setor público continua sendo a do poder federal. Uma forma de amenizar tal disparidade são os chamados fundos de participação: o FPE dos Estados e o FPM dos Municípios. Tais fundos são constituídos com base num percentual do total arrecadado de Imposto de Renda (pessoas físicas e empresas) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), ambos do governo federal. Através desse mecanismo, 21,5% desse total de IR + IPI são rateados entre Estados e DF, enquanto 23,5% são distribuídos entre os mais de 5.500 Municípios de todo o País.
O imposto mais expressivo dos Estados é o ICMS, incidente sobre a circulação de bens e serviços. Já na esfera dos Municípios, os impostos mais significativos são o imposto sobre imóveis urbanos (IPTU) e o imposto sobre serviços (ISS). Mas na grande maioria dos casos, os chamados recursos próprios são insuficientes para fazer frente às necessidades orçamentárias desses entes federados. Assim, eles dependem, essencialmente, dos repasses do FPE e do FPM para fazer frente à execução de suas despesas.
Um dos problemas do modelo adotado para o ICMS é o chamado "efeito-cascata". Como cada Estado faz incidir sua alíquota sobre bens e serviços, há uma enorme complicação quando o produto atravessa várias fronteiras interestaduais antes de chegar ao consumidor final. Outro aspecto refere-se à polêmica "origem x destino" no que se refere à cobrança desse tributo. As unidades da federação produtoras de um determinado bem querem que o chamado "fato gerador" do ICMS ocorra no local da produção, a "origem". Já os Estados consumidores, consideram mais adequada a cobrança no momento do consumo, ou seja, a tributação no "destino". É fácil compreender as razões pelas quais o Senado, com 3 representantes eleitos de cada um dos 26 Estados e mais o DF, encontre enorme dificuldade para aprovar um modelo de consenso ou de grande maioria. No cálculo do perde-e-ganha, com evidentes riscos de redução na arrecadação de seu Estado com qualquer mudança, acaba prevalecendo no voto do congressista a lógica da inércia, de ficar como está.
Em resumo, percebe-se que há um conjunto amplo e heterogêneo de questões relativas à Reforma Tributária, bem como diferentes propostas para solucionar os problemas apontados. Em razão das dificuldades políticas de aceitação na sociedade e das regras institucionais para aprová-las no interior do Congresso Nacional, o mais provável é que as medidas para 2011 sigam o roteiro das tentativas anteriores. Ou seja, um momento político de início de mandato presidencial, governo federal com a força política conquistada na vitória recente nas urnas e com base parlamentar majoritária consolidada. Esse é o quadro considerado "ideal" pelo Executivo para o envio desse tipo de proposta ao Legislativo para aprovação no ritmo mais acelerado possível.
A grande incógnita que permanece é exatamente a do título do artigo: mas qual Reforma Tributária? Para atender a quais interesses no processo de mudança?
Paulo Kliass é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, funcionário de carreira do governo federal e doutor em Economia pela Université de Paris 13.
Fonte: Carta Maior
Paulo Kliass
Qui, 17 de junho de 2010 12:42
ImpostosPodem anotar aí! Com a aproximação das eleições, voltarão ao centro dos debates alguns temas recorrentes em nosso País. Reforma tributária, reforma política, reforma previdenciária, reforma administrativa, redefinição do pacto federativo, entre tantos outros.
Sem dúvida, trata-se de elementos sensíveis e significativos de estruturação da sociedade brasileira, na maioria dos casos com amarrações de ordem constitucional. Ou seja, para implementar alguma mudança, faz-se necessário que o Congresso aprove um tipo de medida chamada Proposta de Emenda Constitucional - PEC. E a própria Carta Magna de 1988 prevê que as alterações em seus dispositivos só sejam efetuadas por votação com maioria de 3/5 dos congressistas e com 2 votações em cada uma das Casas, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados. Aliás, uma justa preocupação dos constituintes em evitar que os avanços conquistados com a Carta Cidadã pudessem ser objeto de retrocesso político apenas com votações ordinárias no trâmite legislativo, que às vezes ocorrem com o plenário vazio e apenas contando com os votos das lideranças partidárias.
Mencionar a necessidade de reformas passou a ser uma verdadeira panacéia para todos os males de nossa sociedade. Em princípio, todas as forças políticas parecem estar de acordo a respeito da necessidade de promover mudanças. No entanto, o assunto fica complicado quando se passa a debater os conteúdos e os sentidos das alterações. As questões são polêmicas e os interesses em jogo se revelam bastante contraditórios. E a dificuldade em se reunir uma tal hegemonia parlamentar (60% dos votos presentes) em torno de uma linha de transformação faz com que as mudanças substantivas sejam raras.
Neste artigo vamos tentar localizar o equilíbrio de forças e os interesses em torno da reforma tributária. Imagino que não haverá força política ou grupo partidário que se declare plenamente satisfeito com os dispositivos do Título VI, Capítulo I da Constituição, que trata do Sistema Tributário Nacional (arts. 145 a 162). No entanto, é necessário compreender bem quais são os sentidos das diferentes linhas de reforma de nosso sistema de tributos.
Vez por outra nos vemos com artigos e campanhas contra a tão propalada "carga tributária excessiva", que "inviabiliza a ação empresarial e encarece o custo Brasil". Apesar de ser verdadeiro o argumento do crescimento do total de tributos em relação ao PIB ocorrido ao longo dos últimos anos, a questão é mais complexa do que simplesmente adotar a redução dos impostos como solução para "destravar as amarras que impedem o empreendedorismo". Um fenômeno, normalmente "esquecido" no debate, é que houve também, no mesmo período, um grande crescimento das despesas orçamentárias de caráter financeiro, em razão do patamar elevado da taxa de juros imposto pela política monetária ortodoxa. E esse é um dos fatores que contribui para explicar a atual carga tributária.
O primeiro ponto a destacar é a respeito da injustiça que caracteriza a estrutura tributária em nosso País. Os economistas costumam classificar os modelos tributários em dois tipos: i) progressivos e ii) regressivos. Os primeiros seriam característicos de sociedades que optam por taxar mais aqueles que mais têm patrimônio, mais consomem ou recebem renda mais elevada. São considerados os modelos de maior justiça social. No segundo caso - o regressivo, o modelo é perverso em termos de desigualdade sócio-econômica: pagam mais tributos as famílias ou os indivíduos que possuem menor patrimônio, consomem menos ou recebem menor renda.
Não precisa ser especialista em matéria tributária para ter a sensibilidade de perceber que a estrutura tributária brasileira é altamente regressiva. A população mais pobre paga, proporcionalmente, muito mais tributos do que as camadas mais abastadas da elite. E o mais interessante é que aqueles que tomam as iniciativas dos movimentos contra os impostos são justamente os que mais se beneficiam do modelo regressivo aqui existente.
E tal característica - a regressividade - se combina a outra, que agrava ainda mais a população de menor renda. Trata-se da distinção entre tributos diretos e indiretos. Os primeiros são aqueles que incidem diretamente sobre o contribuinte, que é quem arca com o ônus tributário. É o caso do imposto de renda, dos impostos sobre imóveis, entre outros. Já os impostos indiretos são aqueles recolhidos por um contribuinte, mas cujo ônus fica com outro. E aqui, outra vez, revela-se toda a face da regressividade. No Brasil são os exemplos típicos de imposto indireto o ICMS estadual, o IPI federal e outros. São tributos que as empresas recolhem ao fisco no momento da produção das mercadorias ou na venda/comercialização de bens e serviços. O grande "xis" da questão é que os encargos tributários são repassados aos preços e o consumidor é o verdadeiro "contribuinte" de fato, na ponta final do consumo.
Imagine-se, assim, a cesta de consumo de uma família que esteja localizada na base da pirâmide social. Todos os bens e serviços adquiridos ao longo do mês já têm embutidos no seu preço algo em torno de 30% de tributos. Em geral, ao passar pelo caixa do supermercado as mercadorias contêm, no mínimo, um percentual relativo ao IPI e ao ICMS. Assim quem compra um litro de leite, um pão francês, um quilo de farinha e um saco de café, por exemplo, paga o mesmo valor de impostos, independentemente de seu nível de renda ou classe social. Ao quitar a fatura de energia elétrica, de telefonia, de água, ao pagar a passagem do ônibus e outros serviços públicos ou privados, o mesmo fenômeno se repete: os pobres pagam as mesmas alíquotas do que os que recebem maior renda.
Com relação ao imposto de renda das pessoas físicas, o modelo é também regressivo. As alíquotas passam a incidir apenas para quem tem renda mensal superior a R$1.500 - os que recebem menos são isentos desse imposto. E elas variam de 7,5% a 27,5% sobre a renda recebida. O detalhe é que a alíquota máxima, que em princípio deveria incidir sobre as faixas mais altas, é a mesma para todos os contribuintes com renda superior a R$3.740. Ou seja, o modelo reconhece que o contribuinte que tem uma renda mensal de R$4.000 deva ser objeto de uma alíquota maior que o que recebe R$2.000. Mas quem recebe valores de R$100.000 por mês, por exemplo, tem o mesmo tratamento tributário do que aquele que recebe R$5.000 - ambos estão na mesma faixa de renda...
Isso para não mencionar todas as outras formas de se reduzir o valor do imposto de renda efetivamente pago, por meio de deduções com despesas com educação, saúde, previdência privada e outros mecanismos aos quais a população de baixa renda não tem acesso.
O discurso do liberalismo econômico radicalizado procura demonizar a presença do Estado na economia e, com ele, vem a postura raivosa contra a suposta "sanha arrecadadora" do leão. Porém, é importante observar que a função de recolhimento de impostos, que se atribui ao poder público, decorre do desenho institucional das sociedades há vários séculos: a necessidade de construir estruturas de serviços públicos e oferecer os meios permanentes de acesso à maioria da população aos mesmos. E aqui vem a lista já bem conhecida de sempre: saúde, educação, assistência social, previdência social, transportes, serviços de justiça e cidadania, transportes, energia, comunicações, etc. Por outro lado, a arrecadação de impostos cumpre com outra função relevante: os recursos arrecadados operam como fonte para redução das desigualdades sociais, econômicas e regionais, com o objetivo de promover a coesão do conjunto da sociedade.
E para cumprir com tais missões, o Estado necessita contar com recursos, os quais arrecada da sociedade por meio dos tributos. E aqui vale uma observação importante: em nosso País, o termo tributo é utilizado no sentido amplo, lato sensu. Na verdade, nesse conjunto estão englobados os impostos, as taxas e as contribuições recolhidos pelos 3 níveis da administração: federal, estadual e municipal.
ImpostosAtualmente, a carga tributária no Brasil situa-se em torno de 35%. Para chegar a esse índice, a metodologia recomenda utilizar as informações da Contabilidade Nacional do IBGE. Assim, verifica-se a participação do total de tributos no valor do PIB. Nesse montante incluem-se também as arrecadações de caráter previdenciário (inclusive do FGTS), que representam quase 10% do PIB. Os tributos sobre os bens e serviços (produção e consumo) representam por volta de 15%. Os tributos sobre renda, propriedade e capital representariam também por volta de 10%. Ora, se a proposta é a tão propalada redução do volume de impostos, é preciso que apontem de onde pretendem retirar a tributação. E verificar quais os setores seriam prejudicados na hora do Estado contar com menos recursos para cumprir com suas funções básicas.
Atenção especial deve ser dada às idéias de alterar o mecanismo de financiamento da Previdência Social, o INSS. Vira e mexe volta a sugestão de desonerar a folha de pagamento, substituindo-a com soluções miraculosas, como a proposta de incidência de uma alíquota sobre o faturamento das empresas. Em essência, sempre o antigo questionamento neoliberal quanto ao modelo de seguridade social pública e a gulosa tentação de transformar esse enorme volume de recursos em massa a ser movimentada pelo mercado financeiro.
As considerações apontadas até aqui não podem significar, por outro lado, uma postura conformista de nossa parte no que se refere à forma como o Estado brasileiro realiza seus dispêndios. É sabido que a administração pública gasta mal, principalmente no que se refere aos serviços prestados à população de mais baixa renda. Estruturas antiquadas, vícios do patrimonialismo, características culturais que tendem a favorecer a corrupção, dificuldades institucionais na relação do pacto federativo (União, Estados e Municípios). Os recursos existem, mas muitas vezes não "chegam" na ponta, como diz expressão popular carregada de eufemismo.
Em suma, a qualidade do nosso gasto não corresponde à expectativa dos serviços oferecidos, ainda mais se levarmos em conta que possuímos um índice de arrecadação de impostos sobre o PIB mais elevado do que a média dos países em desenvolvimento. Mas a busca de solução passa por aperfeiçoamento e melhoria da despesa pública e não pela redução da carga tributária!
Um elemento essencial para o aprimoramento de nosso modelo tributário refere-se à criação do Imposto sobre Grandes Fortunas - IGF. A maioria da população talvez desconheça o fato, mas essa foi uma recomendação dos constituintes ainda nos idos de 1988 e consta do inc. VII, do art. 153 da Constituição. Porém, passados 22 anos, a lei complementar criando o tributo portador de inequívoca justiça social ainda não foi aprovada pelo Congresso Nacional.
A ironia da história é que há vários projetos em tramitação no legislativo dando forma ao IGF. O primeiro, de autoria do então Senador Fernando Henrique Cardoso, já foi aprovado pelo Senado e encontra-se na Câmara dos Deputados. Mais recentemente, em 2008, a bancada do PSOL apresentou versão mais atualizada para o referido imposto. Apesar da importância da medida, sua aprovação dependeria de uma grande mobilização na base da sociedade, uma vez que a correlação de forças no interior do Congresso não parece muito favorável a tal mudança.
Ainda no campo da tributação sobre o patrimônio, há medidas mais simples de implementação e que não dependem de alteração constitucional. É o caso da instituição do IPVA sobre iates de luxo e jatos executivos, ainda generosamente excluídos da cobrança, uma vez que há decisão do STF que restringe o conceito de "veículo automotor" apenas àqueles de circulação terrestre. Além disso, a cobrança do Imposto Territorial Rural - ITR está longe de ser implementada de maneira efetiva por todo o território nacional. Não obstante a imensidão de nossas áreas agrícolas e da relevância econômica do agronegócio, o ITR representa apenas 0,1 % do total da arrecadação federal, sendo o tributo de menor valor recolhido pela União.
Outra dificuldade para aprovar as PECs de reforma tributária diz respeito ao pacto federativo, ou seja, às sensíveis relações entre a União, os Estados (e o DF) e os Municípios. Apesar da Constituição ter delegado a Estados e Municípios uma série de atribuições em termos de serviços públicos, a grande capacidade arrecadadora do setor público continua sendo a do poder federal. Uma forma de amenizar tal disparidade são os chamados fundos de participação: o FPE dos Estados e o FPM dos Municípios. Tais fundos são constituídos com base num percentual do total arrecadado de Imposto de Renda (pessoas físicas e empresas) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), ambos do governo federal. Através desse mecanismo, 21,5% desse total de IR + IPI são rateados entre Estados e DF, enquanto 23,5% são distribuídos entre os mais de 5.500 Municípios de todo o País.
O imposto mais expressivo dos Estados é o ICMS, incidente sobre a circulação de bens e serviços. Já na esfera dos Municípios, os impostos mais significativos são o imposto sobre imóveis urbanos (IPTU) e o imposto sobre serviços (ISS). Mas na grande maioria dos casos, os chamados recursos próprios são insuficientes para fazer frente às necessidades orçamentárias desses entes federados. Assim, eles dependem, essencialmente, dos repasses do FPE e do FPM para fazer frente à execução de suas despesas.
Um dos problemas do modelo adotado para o ICMS é o chamado "efeito-cascata". Como cada Estado faz incidir sua alíquota sobre bens e serviços, há uma enorme complicação quando o produto atravessa várias fronteiras interestaduais antes de chegar ao consumidor final. Outro aspecto refere-se à polêmica "origem x destino" no que se refere à cobrança desse tributo. As unidades da federação produtoras de um determinado bem querem que o chamado "fato gerador" do ICMS ocorra no local da produção, a "origem". Já os Estados consumidores, consideram mais adequada a cobrança no momento do consumo, ou seja, a tributação no "destino". É fácil compreender as razões pelas quais o Senado, com 3 representantes eleitos de cada um dos 26 Estados e mais o DF, encontre enorme dificuldade para aprovar um modelo de consenso ou de grande maioria. No cálculo do perde-e-ganha, com evidentes riscos de redução na arrecadação de seu Estado com qualquer mudança, acaba prevalecendo no voto do congressista a lógica da inércia, de ficar como está.
Em resumo, percebe-se que há um conjunto amplo e heterogêneo de questões relativas à Reforma Tributária, bem como diferentes propostas para solucionar os problemas apontados. Em razão das dificuldades políticas de aceitação na sociedade e das regras institucionais para aprová-las no interior do Congresso Nacional, o mais provável é que as medidas para 2011 sigam o roteiro das tentativas anteriores. Ou seja, um momento político de início de mandato presidencial, governo federal com a força política conquistada na vitória recente nas urnas e com base parlamentar majoritária consolidada. Esse é o quadro considerado "ideal" pelo Executivo para o envio desse tipo de proposta ao Legislativo para aprovação no ritmo mais acelerado possível.
A grande incógnita que permanece é exatamente a do título do artigo: mas qual Reforma Tributária? Para atender a quais interesses no processo de mudança?
Paulo Kliass é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, funcionário de carreira do governo federal e doutor em Economia pela Université de Paris 13.
Fonte: Carta Maior
domingo, 13 de junho de 2010
Inferno dos aposentados e paraíso dos rentistas
Política
Leo Lince
Sex, 11 de junho de 2010 15:18
O reajuste de 7,7% para os aposentados com rendimentos acima do salário mínimo, depois de muita pressão, foi aprovado nas duas casas do Congresso Nacional. Alvíssaras! Em véspera de eleições o parlamento é sempre mais permeável. A decisão, no entanto, continua na gaveta do chefe do Executivo. Em dúvida sobre o risco eleitoral de sua propensão ao veto, ele empurra com a barriga.
Enquanto isso e até por conta de tal hesitação e demora, o oligopólio midiático sintonizado com o modelo dominante aciona seus tentáculos. Todo santo dia o cidadão é bombardeado pelo chumbo grosso de uma propaganda contrária ao aumento dos aposentados. A disputa pelos recursos do orçamento público, normal nas condições de um maior equilíbrio democrático, ganha uma vestimenta ideológica marcada por uma impressionante agressividade.
Rádios, revistas, televisões e, principalmente, os jornalões de circulação nacional, cerram fileiras em torno de uma campanha feroz. Editoriais, articulistas adestrados, economistas de banco, matérias e pesquisas ideologicamente orientadas, sempre batendo na mesma tecla. ‘Não pode, é febre de gastança’. ‘Projeto demagógico, poderoso fator de desequilíbrio’. ‘Ruinoso para a contabilidade pública, uma hemorragia de gastos’. ‘Populismo anacrônico, fora de contexto, tumultua a gestão fiscal’. São alguns dos petardos da guerra ideológica contra os aposentados.
Querem o veto ao reajuste dos aposentados e apresentam tal decisão como resultante de um suposto “clamor técnico”. Mentira. Não há “clamor técnico” algum, nem sangria desatada. A diferença entre a proposta original do Executivo e o que resultou da votação no Parlamento, como despesa orçamentária, equivale a R$ 1,1 bilhão anual. Quantia bem menor do que os R$ 13,8 bilhões anuais resultantes do aumento de 0.75% na taxa Selic, decretado na mesma época pelo Banco Central. E não se ouviu falar em “clamor técnico” ou “poderoso fator de desequilíbrio”.
Em 2009, os juros e amortizações da dívida pública consumiram 36% do orçamento federal. Um absurdo. Nenhum jornal, no entanto, chamou de estorvo. Um sumidouro de recursos que não merece campanha na mídia grande e nem parece preocupar os titulares da República. Os que se declaram estarrecidos com o aumento de 7,7% dos aposentados não se incomodam o mais mínimo com os inacreditáveis R$ 2,2 trilhões da dívida pública.
Dilma Rousseff, candidata oficial do sistema, forneceu explicações muito esclarecedoras sobre a aceleração vertiginosa do endividamento. Em entrevista recente na rádio CBN, ela afirmou que a dívida cresceu porque, na crise, o governo teve que liberar US$ 100 bilhões do compulsório para os banqueiros. Cresceu também porque o governo teve que injetar US$ 180 bilhões no BNDES para que se pudesse garantir empréstimos e patrocinar fusões e incorporações de grandes empresas em dificuldades. Além de, para tranqüilizar os investidores estrangeiros, bancar reservas internacionais da ordem de US$ 250 bilhões. Tudo muito claro.
A campanha cerrada contra o reajuste dos aposentados, neste quadro, faz sentido. Ela é uma contrapartida lógica do vergonhoso tributo ao grande capital, que trata com naturalidade a dívida monstruosa. São elementos de uma ideologia dominante que faz do Brasil o que ele é hoje: inferno dos aposentados e paraíso dos rentistas.
Léo Lince é sociólogo e mestre em ciência social
Leo Lince
Sex, 11 de junho de 2010 15:18
O reajuste de 7,7% para os aposentados com rendimentos acima do salário mínimo, depois de muita pressão, foi aprovado nas duas casas do Congresso Nacional. Alvíssaras! Em véspera de eleições o parlamento é sempre mais permeável. A decisão, no entanto, continua na gaveta do chefe do Executivo. Em dúvida sobre o risco eleitoral de sua propensão ao veto, ele empurra com a barriga.
Enquanto isso e até por conta de tal hesitação e demora, o oligopólio midiático sintonizado com o modelo dominante aciona seus tentáculos. Todo santo dia o cidadão é bombardeado pelo chumbo grosso de uma propaganda contrária ao aumento dos aposentados. A disputa pelos recursos do orçamento público, normal nas condições de um maior equilíbrio democrático, ganha uma vestimenta ideológica marcada por uma impressionante agressividade.
Rádios, revistas, televisões e, principalmente, os jornalões de circulação nacional, cerram fileiras em torno de uma campanha feroz. Editoriais, articulistas adestrados, economistas de banco, matérias e pesquisas ideologicamente orientadas, sempre batendo na mesma tecla. ‘Não pode, é febre de gastança’. ‘Projeto demagógico, poderoso fator de desequilíbrio’. ‘Ruinoso para a contabilidade pública, uma hemorragia de gastos’. ‘Populismo anacrônico, fora de contexto, tumultua a gestão fiscal’. São alguns dos petardos da guerra ideológica contra os aposentados.
Querem o veto ao reajuste dos aposentados e apresentam tal decisão como resultante de um suposto “clamor técnico”. Mentira. Não há “clamor técnico” algum, nem sangria desatada. A diferença entre a proposta original do Executivo e o que resultou da votação no Parlamento, como despesa orçamentária, equivale a R$ 1,1 bilhão anual. Quantia bem menor do que os R$ 13,8 bilhões anuais resultantes do aumento de 0.75% na taxa Selic, decretado na mesma época pelo Banco Central. E não se ouviu falar em “clamor técnico” ou “poderoso fator de desequilíbrio”.
Em 2009, os juros e amortizações da dívida pública consumiram 36% do orçamento federal. Um absurdo. Nenhum jornal, no entanto, chamou de estorvo. Um sumidouro de recursos que não merece campanha na mídia grande e nem parece preocupar os titulares da República. Os que se declaram estarrecidos com o aumento de 7,7% dos aposentados não se incomodam o mais mínimo com os inacreditáveis R$ 2,2 trilhões da dívida pública.
Dilma Rousseff, candidata oficial do sistema, forneceu explicações muito esclarecedoras sobre a aceleração vertiginosa do endividamento. Em entrevista recente na rádio CBN, ela afirmou que a dívida cresceu porque, na crise, o governo teve que liberar US$ 100 bilhões do compulsório para os banqueiros. Cresceu também porque o governo teve que injetar US$ 180 bilhões no BNDES para que se pudesse garantir empréstimos e patrocinar fusões e incorporações de grandes empresas em dificuldades. Além de, para tranqüilizar os investidores estrangeiros, bancar reservas internacionais da ordem de US$ 250 bilhões. Tudo muito claro.
A campanha cerrada contra o reajuste dos aposentados, neste quadro, faz sentido. Ela é uma contrapartida lógica do vergonhoso tributo ao grande capital, que trata com naturalidade a dívida monstruosa. São elementos de uma ideologia dominante que faz do Brasil o que ele é hoje: inferno dos aposentados e paraíso dos rentistas.
Léo Lince é sociólogo e mestre em ciência social
quarta-feira, 9 de junho de 2010
FRASE DA SEMANA
“ NADA DEVE PARECER NATURAL, NADA DEVE PARECER IMPOSSÍVEL DE MUDAR.”
Bertolt Brecht
Poeta e dramaturgo alemão
Bertolt Brecht
Poeta e dramaturgo alemão
Déficit previdenciário é falso argumento contra benefícios aos aposentados
Escrito por Gabriel Brito, da Redação do Correio da Cidadania
É certo que vivemos uma era de desencanto com a política, com cada vez mais pessoas desinteressadas do debate de idéias e de programas de ação. Mas, para o observador atento, o ano eleitoral também pode ser pródigo em revelar toda a hipocrisia que cerca as políticas de governo e os posicionamentos de inúmeros parlamentares.
Salta aos olhos a gritante prioridade que certos setores sociais e econômicos desfrutam, sempre premiados por medidas e ajustes fiscais impostos ao país, enquanto parlamentares resolvem em massa buscar a satisfação de seus eleitores, e não de seus financiadores, quando se trata de temporada de renovação legislativa.
E é dentro dessa imensa casa de tolerância e flexibilidade moral que se tomou uma importantíssima decisão em favor dos aposentados do país, tão freqüentemente vilipendiados pelas políticas decididas em Brasília. Primeiro, a Câmara dos Deputados aprovou o reajuste de 7,71% para os trabalhadores inativos e o fim do fator previdenciário (uma fórmula, criada no governo FHC, que leva em conta o tempo de contribuição do trabalhador, sua idade e a expectativa de vida dos brasileiros no momento da aposentadoria). Mesmo com o escarcéu fiscalista, na terça-feira, 19 de maio, foi a vez de o Senado dar sinal verde ao projeto. Falta agora somente a sanção de Lula.
O ‘tamanho’ do reajuste de 7,71%
“Acho o reajuste uma medida justa, porque são pessoas que contribuíram, receberam aposentadorias que foram ficando defasadas e agora têm a oportunidade de receber reajuste num período de crescimento do país. A disponibilidade de recursos orçamentários cresceu e essa recomposição pode ser feita com tranqüilidade. É uma medida justa”, disse ao Correio da Cidadania a diretora de macroeconomia do IPEA Denise Gentil.
Para alguns, seria até possível oferecer um aumento superior, vide o (verdadeiro) orçamento do país e as perdas acumuladas com as reformas aplicadas à previdência, sempre prejudiciais aos trabalhadores. “O governo, em função do que tem gasto nos últimos anos com pagamento de juros e da dívida pública, poderia dar um reajuste bem maior que esses 7,71%. Eu analiso assim. Até porque há uma defasagem muito grande nos valores da aposentadoria”, afirmou Washington Lima, economista do Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário.
Conforme exploramos a questão, podemos ver como tal aumento dos proventos aos aposentados é ‘café pequeno’ diante das cifras que o país tem manejado. Além do mais, com as pressões do ano eleitoral, parece difícil que não se atendam aos desejos desses cidadãos que têm acompanhado com afinco os trabalhos no Congresso e feito um corpo a corpo que até aqui se mostra bem sucedido.
Para conceder tal benefício, o próprio ministro da Fazenda Guido Mantega entregou o ouro e deixou claro que não haverá a mínima fissura nas contas do país, como gostam de alardear os cavaleiros do apocalipse previdenciário. Em relação aos 6% oferecidos pelo governo, o reajuste de 7,72% significa 2 bilhões de reais a menos nos cofres. O que só pode nos levar a pensar se toda a discussão em torno dessa diferença não é acima de tudo patética.
“Acho que a sociedade tem de se conscientizar de que o Banco Central aumentou a Selic em mais 0,75% e ninguém faz muita questão de discutir isso. Cada ponto percentual da Selic significa uma despesa de mais de 10 bilhões de reais por ano. E qual contribuição os rentistas deram pra receberem a mais alta taxa de juros do planeta? Já os aposentados, contribuíram e agora pedem restituição. E quem paga esse aumento de Selic, que custa 10 bilhões ao ano? Tiram pela DRU (Desvinculação de Receitas da União), um dinheiro destinado principalmente à seguridade social. E essas coisas não são contestadas. Mas quando os aposentados, que passaram a vida trabalhando e contribuindo, pedem uma recomposição, é tido como algo que vai quebrar o orçamento”, indigna-se Denise Gentil.
No entanto, o que ressoa na nossa mídia, de orientação neoliberal e anti-estatista, são os fantasmas do rombo da previdência, dificuldades futuras com o envelhecimento da população e a tão aclamada responsabilidade fiscal, o que nubla o debate e dá a entender que, dar mais dinheiro aos aposentados, é arriscar o pão de cada dia do país todo. “Há uma conta no orçamento que se chama Cobertura de Prejuízos do BC, feita para cobrir toda a operação que o BC faz em favor da especulação financeira, principalmente em taxas de câmbio. Nos quatro primeiros meses de 2010, essa conta já causou um rombo no governo de mais de 55 bilhões de reais. Só o BC dá um prejuízo mensal ao país, para sustentar a especulação financeira, de 14 bilhões de reais”, revela Washington.
Tamanha aberração, no entanto, apenas desnuda para quem e para o que trabalham os eleitos da democracia brasileira. “Portanto, o governo tem amplas condições de cumprir com o reajuste, é um absurdo dizer algo em contrário. Acabaram de anunciar que vão mandar dinheiro ao FMI para ajudar a Grécia. Ou seja, o problema não é orçamentário, é de outra natureza, política, de prioridades do governo”, sintetiza.
O fator previdenciário e o falso déficit da Previdência
Outra boa notícia que não deve ser barrada nem pelo governo convertido à ortodoxia, responsabilidade fiscal e governabilidade é o fim do fator previdenciário. Uma estranha fórmula criada no governo FHC que, no final das contas, abocanha cerca de 30% do que o trabalhador tem a receber como aposentadoria e que, notadamente, dificultou a vida de muitos brasileiros. “É uma medida da era neoliberal que precisa ser sepultada, como o foram várias outras da mesma época, dos anos 90″, aprova Denise.
“Se fizermos as contas, e qualquer um pode fazer essa conta, o que o trabalhador paga à previdência, sem contar a contribuição patronal, já é suficiente para cobrir sua aposentadoria. Se considerarmos que ele paga o dobro em relação às empresas, teremos uma situação em que o trabalhador na verdade pagou muito caro para ter o beneficio em valor integral. E com o fator previdenciário, ele tem redução para menos da metade do valor para o qual ele contribui, ou mesmo do salário mínimo”, explica Washington.
Como revelou este Correio em Especial no ano de 2007 – Previdência: uma longa história de fabricação de mitos rumo à privatização -, nenhuma das conquistas acima citadas sequer ameaça as contas da previdência. Aliás, é preciso ressaltar a imensa fraude que se criou em torno da suposta insolvência da previdência, tendo em vista as suas próprias contas e o orçamento da seguridade social, envolvendo agentes do governo interessados em incrementar ainda mais o rentismo e uma mídia “pró-mercado financeiro”, como assinala a economista do IPEA.
“Há um estudo de três anos atrás, de um economista chamado Amir Khair, mostrando que muitos daqueles que se aposentam por tempo de contribuição, e têm sua aposentadoria ceifada pelo fator, voltam a trabalhar, pois se aposentam lá pelos 54, 55 anos. Portanto, ainda capazes de trabalhar, voltam a recolher INSS. Não apenas recolheram durante o período ativo, como o fazem na fase de aposentadoria, por voltarem a trabalhar. O estudo prova que o saldo do tesouro é positivo, favorável”, diz Denise, autora de tese na UFRJ que também desmistifica o tal rombo.
“É uma falácia, né? A história é mais ou menos assim: a previdência incorporou, a partir de 1988, milhões de trabalhadores, especialmente rurais, que passaram a ter direitos dentro dela. Essas pessoas que passaram a ter os benefícios, por razões óbvias, nunca tinham contribuído para a previdência. Mas, quando se criou essa despesa, a Constituição também criou uma receita correspondente para cobri-la. Se juntarmos a receita previdenciária, vinda dos trabalhadores e empresas, mais os tributos criados (como CSLL, COFINS e tantos outros), a previdência é altamente lucrativa. A imprensa e o próprio governo divulgam uma conta que não existe legalmente e nem contabilmente. O que se tem efetivamente é um grande superávit, computando suas receitas strictu sensu mais as contribuições que a Constituição criou justamente para cobrir a massa de trabalhadores incorporada”, vaticina Washington Lima.
Argumentos falaciosos e catastrofistas por trás do suposto déficit
“No ano passado, o governo gastou no chamado item Gastos Financeiros da União 380 bilhões de reais. É um volume muito alto de recursos que ‘precisa’ ir para o sistema financeiro, daí seus altíssimos lucros. Não a totalidade, mas base significativa vem destes papéis. Então, como não tem 1 bilhão de reajuste aos aposentados?”, questiona Washington.
Dessa forma, fica explícito que estamos diante de uma discussão “descabida”, como definiu Denise Gentil. “Não é correto, justo, legítimo, prejudicar as pessoas no fim de suas vidas, quando elas se aposentam e muitas vezes precisam de tratamentos caríssimos e cuidados de saúde. Você ferra essa camada da população, mas não questiona o aumento de 10 bilhões de reais na sangria dos cofres públicos para cada ponto percentual na Selic. É uma discussão totalmente desproporcional e só posso enxergar nisso propaganda dos meios de comunicação do país, que são totalmente pró-mercado financeiro”.
“Após a votação, veio toda a grita da grande imprensa: acusações de irresponsabilidade, de farra com dinheiro público. Nenhuma palavra, mais uma vez, sobre os gastos escandalosos com o pagamento de juros e rolagem da dívida pública que, somente no ano passado, consumiram R$ 380 bilhões (36% do orçamento do país) em juros e amortizações. Já para os aposentados, sempre falta dinheiro”, lembrou o deputado federal do PSOL-SP Ivan Valente, que presidiu a esvaziada (por quê?) CPI da Dívida Pública.
Além disso, a economista do IPEA não enxerga nada tão preocupante com outra teoria acerca da previdência, a de seu inchaço com o futuro envelhecimento da população brasileira, que em 2050 deve inverter a proporção de jovens e idosos. “São visões catastrofistas. Haverá um inchaço, mas não se leva em conta que, no futuro, teremos uma sociedade cada vez mais produtiva, produzindo bens e serviços em quantidades maiores com contingentes menores. Portanto, vão gerar um PIB maior, o que permite que se sustente perfeitamente nossa previdência. Tais cálculos normalmente subestimam a capacidade produtiva, tecnológica e de crescimento de uma sociedade capitalista”, explica.
De resto, deixa-se de levar em conta a alta taxa de informalidade em nossa economia, haja vista que ao menos um terço de nossa população economicamente ativa não está incorporada à seguridade social. Com o crescimento e qualificação de nossa economia, o número de trabalhadores inseridos cresce substancialmente, e com isso a receita previdenciária.
“O que contra-resta qualquer crescimento da população idosa é a boa política macroeconômica, de geração de emprego, de incorporação do maior número possível de pessoas em idade de trabalhar ao mercado de trabalho, pois, se tiverem emprego, vão gerar tudo que a sociedade necessita para sustentar nossa população idosa. Não é possível que preguem como a melhor saída reduzir a renda dos nossos idosos. É uma solução impatriótica, anti-cidadã. Pra não dizer imoral”, completa Denise.
“É aquela história, na Europa, não existia dinheiro na previdência, mas, quando os bancos quebraram, trilhões e trilhões de dólares, euros, desaguaram. Aqui é a mesma coisa, a previdência está mal, mas, para cobrir os bancos na crise, o dinheiro apareceu sem grandes problemas. Portanto, o que se tem é uma grande falácia sobre a questão”, critica Washington.
“Volto ao meu raciocínio: esse país não quer dar correção de aposentadoria a uma parcela que representa 6% do total dos benefícios concedidos de acordo com o fator previdenciário, e para uma parcela pequena de idosos que recebem acima do mínimo, que corresponde a mais ou menos um terço do contingente dos aposentados. Mas é o mesmo país que não debate as taxas de juros mais altas do mundo. Deveria se dar o devido peso às duas questões”, resume Denise Gentil.
Crise financeira e nova rodada de ataques aos direitos sociais
Face à evidência de que a crise iniciada em 2008 ainda não foi estancada, o que a situação grega e de outros países europeus vem a demonstrar cabalmente, novas socializações de perdas podem ser lançadas à população como medidas inevitáveis, ainda que esperem pelo fim do ano eleitoral. Não é, pois, difícil de desconfiar que esteja em andamento mais um ataque aos direitos dos trabalhadores.
Na última débâcle do capital, desonerações foram feitas em nome da sustentação de empresas, bancos e créditos. Mas nada disso impediu as demissões e flexibilizações de direitos, além do sumiço do dinheiro jogado na economia pelo governo, que foi parar em novas especulações e cobertura de rombos das matrizes.
Tramitam já no Congresso diversos projetos de lei e emendas constitucionais nesse sentido: o PLP 549 (que congelaria salários do funcionalismo público por 10 anos!), o PLP 248 (contra a estabilidade), PEC 306 (pelo fim do Regime Jurídico Único), Decreto 6.944 (política produtivista) e a MP 431 (avaliação de desempenho). São todos de orientação sempre combatida pelos trabalhadores e que ainda podem avançar.
Por hora, é torcer para que não sejam barrados pelo presidente Lula o reajuste aos aposentados e o fim do fator previdenciário, já aprovados no Senado.
Gabriel Brito é jornalista.
Colaborou Valéria Nader, editora do Correio da Cidadania.
Artigo publicado originalmente no Correio da Cidadania em 22-Mai-2010
É certo que vivemos uma era de desencanto com a política, com cada vez mais pessoas desinteressadas do debate de idéias e de programas de ação. Mas, para o observador atento, o ano eleitoral também pode ser pródigo em revelar toda a hipocrisia que cerca as políticas de governo e os posicionamentos de inúmeros parlamentares.
Salta aos olhos a gritante prioridade que certos setores sociais e econômicos desfrutam, sempre premiados por medidas e ajustes fiscais impostos ao país, enquanto parlamentares resolvem em massa buscar a satisfação de seus eleitores, e não de seus financiadores, quando se trata de temporada de renovação legislativa.
E é dentro dessa imensa casa de tolerância e flexibilidade moral que se tomou uma importantíssima decisão em favor dos aposentados do país, tão freqüentemente vilipendiados pelas políticas decididas em Brasília. Primeiro, a Câmara dos Deputados aprovou o reajuste de 7,71% para os trabalhadores inativos e o fim do fator previdenciário (uma fórmula, criada no governo FHC, que leva em conta o tempo de contribuição do trabalhador, sua idade e a expectativa de vida dos brasileiros no momento da aposentadoria). Mesmo com o escarcéu fiscalista, na terça-feira, 19 de maio, foi a vez de o Senado dar sinal verde ao projeto. Falta agora somente a sanção de Lula.
O ‘tamanho’ do reajuste de 7,71%
“Acho o reajuste uma medida justa, porque são pessoas que contribuíram, receberam aposentadorias que foram ficando defasadas e agora têm a oportunidade de receber reajuste num período de crescimento do país. A disponibilidade de recursos orçamentários cresceu e essa recomposição pode ser feita com tranqüilidade. É uma medida justa”, disse ao Correio da Cidadania a diretora de macroeconomia do IPEA Denise Gentil.
Para alguns, seria até possível oferecer um aumento superior, vide o (verdadeiro) orçamento do país e as perdas acumuladas com as reformas aplicadas à previdência, sempre prejudiciais aos trabalhadores. “O governo, em função do que tem gasto nos últimos anos com pagamento de juros e da dívida pública, poderia dar um reajuste bem maior que esses 7,71%. Eu analiso assim. Até porque há uma defasagem muito grande nos valores da aposentadoria”, afirmou Washington Lima, economista do Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário.
Conforme exploramos a questão, podemos ver como tal aumento dos proventos aos aposentados é ‘café pequeno’ diante das cifras que o país tem manejado. Além do mais, com as pressões do ano eleitoral, parece difícil que não se atendam aos desejos desses cidadãos que têm acompanhado com afinco os trabalhos no Congresso e feito um corpo a corpo que até aqui se mostra bem sucedido.
Para conceder tal benefício, o próprio ministro da Fazenda Guido Mantega entregou o ouro e deixou claro que não haverá a mínima fissura nas contas do país, como gostam de alardear os cavaleiros do apocalipse previdenciário. Em relação aos 6% oferecidos pelo governo, o reajuste de 7,72% significa 2 bilhões de reais a menos nos cofres. O que só pode nos levar a pensar se toda a discussão em torno dessa diferença não é acima de tudo patética.
“Acho que a sociedade tem de se conscientizar de que o Banco Central aumentou a Selic em mais 0,75% e ninguém faz muita questão de discutir isso. Cada ponto percentual da Selic significa uma despesa de mais de 10 bilhões de reais por ano. E qual contribuição os rentistas deram pra receberem a mais alta taxa de juros do planeta? Já os aposentados, contribuíram e agora pedem restituição. E quem paga esse aumento de Selic, que custa 10 bilhões ao ano? Tiram pela DRU (Desvinculação de Receitas da União), um dinheiro destinado principalmente à seguridade social. E essas coisas não são contestadas. Mas quando os aposentados, que passaram a vida trabalhando e contribuindo, pedem uma recomposição, é tido como algo que vai quebrar o orçamento”, indigna-se Denise Gentil.
No entanto, o que ressoa na nossa mídia, de orientação neoliberal e anti-estatista, são os fantasmas do rombo da previdência, dificuldades futuras com o envelhecimento da população e a tão aclamada responsabilidade fiscal, o que nubla o debate e dá a entender que, dar mais dinheiro aos aposentados, é arriscar o pão de cada dia do país todo. “Há uma conta no orçamento que se chama Cobertura de Prejuízos do BC, feita para cobrir toda a operação que o BC faz em favor da especulação financeira, principalmente em taxas de câmbio. Nos quatro primeiros meses de 2010, essa conta já causou um rombo no governo de mais de 55 bilhões de reais. Só o BC dá um prejuízo mensal ao país, para sustentar a especulação financeira, de 14 bilhões de reais”, revela Washington.
Tamanha aberração, no entanto, apenas desnuda para quem e para o que trabalham os eleitos da democracia brasileira. “Portanto, o governo tem amplas condições de cumprir com o reajuste, é um absurdo dizer algo em contrário. Acabaram de anunciar que vão mandar dinheiro ao FMI para ajudar a Grécia. Ou seja, o problema não é orçamentário, é de outra natureza, política, de prioridades do governo”, sintetiza.
O fator previdenciário e o falso déficit da Previdência
Outra boa notícia que não deve ser barrada nem pelo governo convertido à ortodoxia, responsabilidade fiscal e governabilidade é o fim do fator previdenciário. Uma estranha fórmula criada no governo FHC que, no final das contas, abocanha cerca de 30% do que o trabalhador tem a receber como aposentadoria e que, notadamente, dificultou a vida de muitos brasileiros. “É uma medida da era neoliberal que precisa ser sepultada, como o foram várias outras da mesma época, dos anos 90″, aprova Denise.
“Se fizermos as contas, e qualquer um pode fazer essa conta, o que o trabalhador paga à previdência, sem contar a contribuição patronal, já é suficiente para cobrir sua aposentadoria. Se considerarmos que ele paga o dobro em relação às empresas, teremos uma situação em que o trabalhador na verdade pagou muito caro para ter o beneficio em valor integral. E com o fator previdenciário, ele tem redução para menos da metade do valor para o qual ele contribui, ou mesmo do salário mínimo”, explica Washington.
Como revelou este Correio em Especial no ano de 2007 – Previdência: uma longa história de fabricação de mitos rumo à privatização -, nenhuma das conquistas acima citadas sequer ameaça as contas da previdência. Aliás, é preciso ressaltar a imensa fraude que se criou em torno da suposta insolvência da previdência, tendo em vista as suas próprias contas e o orçamento da seguridade social, envolvendo agentes do governo interessados em incrementar ainda mais o rentismo e uma mídia “pró-mercado financeiro”, como assinala a economista do IPEA.
“Há um estudo de três anos atrás, de um economista chamado Amir Khair, mostrando que muitos daqueles que se aposentam por tempo de contribuição, e têm sua aposentadoria ceifada pelo fator, voltam a trabalhar, pois se aposentam lá pelos 54, 55 anos. Portanto, ainda capazes de trabalhar, voltam a recolher INSS. Não apenas recolheram durante o período ativo, como o fazem na fase de aposentadoria, por voltarem a trabalhar. O estudo prova que o saldo do tesouro é positivo, favorável”, diz Denise, autora de tese na UFRJ que também desmistifica o tal rombo.
“É uma falácia, né? A história é mais ou menos assim: a previdência incorporou, a partir de 1988, milhões de trabalhadores, especialmente rurais, que passaram a ter direitos dentro dela. Essas pessoas que passaram a ter os benefícios, por razões óbvias, nunca tinham contribuído para a previdência. Mas, quando se criou essa despesa, a Constituição também criou uma receita correspondente para cobri-la. Se juntarmos a receita previdenciária, vinda dos trabalhadores e empresas, mais os tributos criados (como CSLL, COFINS e tantos outros), a previdência é altamente lucrativa. A imprensa e o próprio governo divulgam uma conta que não existe legalmente e nem contabilmente. O que se tem efetivamente é um grande superávit, computando suas receitas strictu sensu mais as contribuições que a Constituição criou justamente para cobrir a massa de trabalhadores incorporada”, vaticina Washington Lima.
Argumentos falaciosos e catastrofistas por trás do suposto déficit
“No ano passado, o governo gastou no chamado item Gastos Financeiros da União 380 bilhões de reais. É um volume muito alto de recursos que ‘precisa’ ir para o sistema financeiro, daí seus altíssimos lucros. Não a totalidade, mas base significativa vem destes papéis. Então, como não tem 1 bilhão de reajuste aos aposentados?”, questiona Washington.
Dessa forma, fica explícito que estamos diante de uma discussão “descabida”, como definiu Denise Gentil. “Não é correto, justo, legítimo, prejudicar as pessoas no fim de suas vidas, quando elas se aposentam e muitas vezes precisam de tratamentos caríssimos e cuidados de saúde. Você ferra essa camada da população, mas não questiona o aumento de 10 bilhões de reais na sangria dos cofres públicos para cada ponto percentual na Selic. É uma discussão totalmente desproporcional e só posso enxergar nisso propaganda dos meios de comunicação do país, que são totalmente pró-mercado financeiro”.
“Após a votação, veio toda a grita da grande imprensa: acusações de irresponsabilidade, de farra com dinheiro público. Nenhuma palavra, mais uma vez, sobre os gastos escandalosos com o pagamento de juros e rolagem da dívida pública que, somente no ano passado, consumiram R$ 380 bilhões (36% do orçamento do país) em juros e amortizações. Já para os aposentados, sempre falta dinheiro”, lembrou o deputado federal do PSOL-SP Ivan Valente, que presidiu a esvaziada (por quê?) CPI da Dívida Pública.
Além disso, a economista do IPEA não enxerga nada tão preocupante com outra teoria acerca da previdência, a de seu inchaço com o futuro envelhecimento da população brasileira, que em 2050 deve inverter a proporção de jovens e idosos. “São visões catastrofistas. Haverá um inchaço, mas não se leva em conta que, no futuro, teremos uma sociedade cada vez mais produtiva, produzindo bens e serviços em quantidades maiores com contingentes menores. Portanto, vão gerar um PIB maior, o que permite que se sustente perfeitamente nossa previdência. Tais cálculos normalmente subestimam a capacidade produtiva, tecnológica e de crescimento de uma sociedade capitalista”, explica.
De resto, deixa-se de levar em conta a alta taxa de informalidade em nossa economia, haja vista que ao menos um terço de nossa população economicamente ativa não está incorporada à seguridade social. Com o crescimento e qualificação de nossa economia, o número de trabalhadores inseridos cresce substancialmente, e com isso a receita previdenciária.
“O que contra-resta qualquer crescimento da população idosa é a boa política macroeconômica, de geração de emprego, de incorporação do maior número possível de pessoas em idade de trabalhar ao mercado de trabalho, pois, se tiverem emprego, vão gerar tudo que a sociedade necessita para sustentar nossa população idosa. Não é possível que preguem como a melhor saída reduzir a renda dos nossos idosos. É uma solução impatriótica, anti-cidadã. Pra não dizer imoral”, completa Denise.
“É aquela história, na Europa, não existia dinheiro na previdência, mas, quando os bancos quebraram, trilhões e trilhões de dólares, euros, desaguaram. Aqui é a mesma coisa, a previdência está mal, mas, para cobrir os bancos na crise, o dinheiro apareceu sem grandes problemas. Portanto, o que se tem é uma grande falácia sobre a questão”, critica Washington.
“Volto ao meu raciocínio: esse país não quer dar correção de aposentadoria a uma parcela que representa 6% do total dos benefícios concedidos de acordo com o fator previdenciário, e para uma parcela pequena de idosos que recebem acima do mínimo, que corresponde a mais ou menos um terço do contingente dos aposentados. Mas é o mesmo país que não debate as taxas de juros mais altas do mundo. Deveria se dar o devido peso às duas questões”, resume Denise Gentil.
Crise financeira e nova rodada de ataques aos direitos sociais
Face à evidência de que a crise iniciada em 2008 ainda não foi estancada, o que a situação grega e de outros países europeus vem a demonstrar cabalmente, novas socializações de perdas podem ser lançadas à população como medidas inevitáveis, ainda que esperem pelo fim do ano eleitoral. Não é, pois, difícil de desconfiar que esteja em andamento mais um ataque aos direitos dos trabalhadores.
Na última débâcle do capital, desonerações foram feitas em nome da sustentação de empresas, bancos e créditos. Mas nada disso impediu as demissões e flexibilizações de direitos, além do sumiço do dinheiro jogado na economia pelo governo, que foi parar em novas especulações e cobertura de rombos das matrizes.
Tramitam já no Congresso diversos projetos de lei e emendas constitucionais nesse sentido: o PLP 549 (que congelaria salários do funcionalismo público por 10 anos!), o PLP 248 (contra a estabilidade), PEC 306 (pelo fim do Regime Jurídico Único), Decreto 6.944 (política produtivista) e a MP 431 (avaliação de desempenho). São todos de orientação sempre combatida pelos trabalhadores e que ainda podem avançar.
Por hora, é torcer para que não sejam barrados pelo presidente Lula o reajuste aos aposentados e o fim do fator previdenciário, já aprovados no Senado.
Gabriel Brito é jornalista.
Colaborou Valéria Nader, editora do Correio da Cidadania.
Artigo publicado originalmente no Correio da Cidadania em 22-Mai-2010
FRASE DA SEMANA
“ O PROGRESSO É IMPOSSÍVEL SEM MUDANÇAS, E ESSES QUE NÃO MUDAM SUAS MENTES NÃO PODEM MUDAR COISA NENHUMA.”
Bernard Shaw
Escritor irlandês
Bernard Shaw
Escritor irlandês
O reajuste para os aposentados
Plínio Arruda Sampaio
Fator previdenciário e reajuste das aposentadorias: Vetos de Lula são inaceitáveis
Artigo publicado na Revista Carta Capital
Volto ao tema do reajuste dos aposentados em razão da ameaça de concretização do veto presidencial à extinção do malfadado fator previdenciário e ao percentual aprovado no Congresso Nacional. E não poderia ser diferente, pois em todas as ocasiões em que se discutiu remuneração de qualquer tipo às pessoas mais pobres, manifestei-me invariavelmente em favor dos aumentos. Motivo: em um país com desigualdade social obscena toda e qualquer transferência de renda aos mais pobres é válida.
O argumento de que o reajuste provocará desequilíbrio orçamentário omite o quanto o governo ga sta com a remuneração do capital financeiro por meio da dívida pública, que consome 36% do orçamento anual da união, quando o referido reajuste representará um impacto de R$ 680 milhões num orçamento de quase R$ 640 bilhões. Bastaria inverter a lógica de administração orçamentária e estancar a sangria da dívida pública, para que sobrem recursos para a previdência. Mas, mesmo hoje, não há déficit. O que existe, desde a época da ditadura, é o desvio de verbas da Seguridade Social para outras iniciativas, como a construção da ponte Rio-Niterói, estradas de ferro, etc. Hoje, parte do orçamento que deveria garantir o descanso de quem se aposenta vai parar na composição do superávit primário que remunera o capital.
Entristece-me ainda o argumento de que uma das causas dos problemas da previdência seja a imprevidência dos constituintes ao estender o benefício da aposentadoria a pessoas que não haviam contribuído. Que injustiça! Se é verdade que os trabalhadores rurais não pagaram a previdência, é verdade também que, com seus miseráveis salários, subsidiaram durante séculos o consumo de alimentos de quem agora os acusa de aproveitadores. O IPEA demonstrou que, não fora essa previdência, a seca do nordeste em 1994 teria causado uma crise de fome aguda de enormes proporções.
Quanto ao fator previdenciário, como pode ser aceitável que uma pessoa que iniciou sua vida profissional aos 14 anos, caso da maioria dos brasileiros, e já trabalhou por mais de 30 anos seja obrigado a continuar na labuta para manter na aposentadoria os rendimentos da ativa? Não podemos tratar nossos velhos como estorvo.
O direito do aposentado deve ser um parâmetro para a distribuição de renda e não uma variável ajustável de acordo com os interesses dos grupos sociais poderosos. Este é, de resto, o sentido, de uma política fundada em valores sociais e no respeito à dignidade da pessoa humana.
Os brasileiros deveriam se levantar contra a injustiça dos vetos ao reajuste dos aposentados e ao fim do fator previdenciário. Não podemos aceitar passivamente que nossos aposentados sejam tratados como “marajás”, “vagabundos” ou “privilegiados” após construir as riquezas de nosso Brasil. Uma nação se faz com direitos.
Fator previdenciário e reajuste das aposentadorias: Vetos de Lula são inaceitáveis
Artigo publicado na Revista Carta Capital
Volto ao tema do reajuste dos aposentados em razão da ameaça de concretização do veto presidencial à extinção do malfadado fator previdenciário e ao percentual aprovado no Congresso Nacional. E não poderia ser diferente, pois em todas as ocasiões em que se discutiu remuneração de qualquer tipo às pessoas mais pobres, manifestei-me invariavelmente em favor dos aumentos. Motivo: em um país com desigualdade social obscena toda e qualquer transferência de renda aos mais pobres é válida.
O argumento de que o reajuste provocará desequilíbrio orçamentário omite o quanto o governo ga sta com a remuneração do capital financeiro por meio da dívida pública, que consome 36% do orçamento anual da união, quando o referido reajuste representará um impacto de R$ 680 milhões num orçamento de quase R$ 640 bilhões. Bastaria inverter a lógica de administração orçamentária e estancar a sangria da dívida pública, para que sobrem recursos para a previdência. Mas, mesmo hoje, não há déficit. O que existe, desde a época da ditadura, é o desvio de verbas da Seguridade Social para outras iniciativas, como a construção da ponte Rio-Niterói, estradas de ferro, etc. Hoje, parte do orçamento que deveria garantir o descanso de quem se aposenta vai parar na composição do superávit primário que remunera o capital.
Entristece-me ainda o argumento de que uma das causas dos problemas da previdência seja a imprevidência dos constituintes ao estender o benefício da aposentadoria a pessoas que não haviam contribuído. Que injustiça! Se é verdade que os trabalhadores rurais não pagaram a previdência, é verdade também que, com seus miseráveis salários, subsidiaram durante séculos o consumo de alimentos de quem agora os acusa de aproveitadores. O IPEA demonstrou que, não fora essa previdência, a seca do nordeste em 1994 teria causado uma crise de fome aguda de enormes proporções.
Quanto ao fator previdenciário, como pode ser aceitável que uma pessoa que iniciou sua vida profissional aos 14 anos, caso da maioria dos brasileiros, e já trabalhou por mais de 30 anos seja obrigado a continuar na labuta para manter na aposentadoria os rendimentos da ativa? Não podemos tratar nossos velhos como estorvo.
O direito do aposentado deve ser um parâmetro para a distribuição de renda e não uma variável ajustável de acordo com os interesses dos grupos sociais poderosos. Este é, de resto, o sentido, de uma política fundada em valores sociais e no respeito à dignidade da pessoa humana.
Os brasileiros deveriam se levantar contra a injustiça dos vetos ao reajuste dos aposentados e ao fim do fator previdenciário. Não podemos aceitar passivamente que nossos aposentados sejam tratados como “marajás”, “vagabundos” ou “privilegiados” após construir as riquezas de nosso Brasil. Uma nação se faz com direitos.
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