NÃO HAVERÁ MAIS CONCILIAÇÃO
“Quem não é criminoso enfrenta com dignidade o
devido processo legal. O delinquente faz de tudo para escapar do julgamento.
Apenas o delinquente esbraveja, grita”. De todas as pérolas do inesgotável
Compêndio de Bolso do Autoritarismo Nacional que ilumina boa parte das opiniões
correntes nos dias atuais, estas afirmações emitidas na semana passada pelo sr.
Eros Grau, ex-ministro do STF, merecem ser gravadas em mármore pela sua
clareza. Ao lê-las, foi difícil não lembrar imediatamente dos versos do poeta Torquato
Neto: “Leve um homem e um boi ao matadouro. Aquele que gritar é o homem, mesmo
que seja o boi”.
Uma das especificidades da democracia é ser o
regime político capaz de reconhecer que a crítica das leis e de processos
legais injustos não é sinal de “delinquência”. A democracia admite que a
configuração atual das leis pode comportar injustiças e que, por isto, o
direito não é, nunca foi, nem nunca será a expressão imanente do que tem
legitimidade. Ao contrário do que acreditam alguns, não foram as leis que
criaram os homens, mas os homens que criaram as leis.
Eles as criaram em
contextos específicos nos quais se fez valer o sistema de interesse hegemônico
à época. Otto von Bismarck, que tinha ao menos a virtude da honestidade,
lembrava: “Leis são como salsichas. Melhor não saber como são feitas”. Por
isto, é correto dizer: não são as leis que nos unem, mas a certeza de termos
caminhos no interior da vida social para fazer valer a justiça. Quando tais
caminhos desaparecem, não há mais união possível.
Como se não bastasse, a democracia reconhece,
entre outros, o caráter falível da aplicação da lei por pessoas muitas vezes
movidas por interesses particulares. Ela nos lembra que só mesmo aqueles
animados por uma passividade bovina confundiriam a justiça não apenas com o
regime atual das leis, mas com a interpretação atual fornecida pela opinião dos
juízes.
No entanto, a afirmação do sr. Grau tem a
vantagem de explicitar qual deve ser o regime de imposição da autoridade daqui
em diante. Quem questionar o processo legal, por mais que tal processo seja
distorcido, interessado, com mais furos do que um queijo suíço, só poderá ser
visto como delinquente.
Pois com o fim da Nova República através de um golpe
farsesco travestido de impeachment, não será mais possível esperar que toda a
população brasileira tenha um campo mínimo de conciliação no qual
encontraríamos procedimentos que todos aceitem. O golpe quebrará de vez o
pacto, dividindo o país clara e definitivamente em dois. A partir de então,
valerá apenas a força.
Contra isto, há de se dizer com clareza: não há
razão alguma para se submeter a um governo que será ilegítimo, fruto de um
“processo legal” que está mais para uma verdadeira comédia do Pai Ubu. Pois
esse processo de impeachment tem, ao menos, três desvios que destroem
totalmente sua legitimidade.
Primeiro, um dos princípios elementares da justiça
é: “quem tem conflitos de interesse não pode julgar”. 31 deputados indiciados
na Comissão de Impeachment, lutando por sua sobrevivência, e um presidente da
Câmara que é réu, tendo apresentado a proposta de impeachment para retaliar o
partido da presidente em sua decisão de votar pela sua investigação no Conselho
de Ética (sic), não podem julgar nada em lugar nenhum do mundo, apenas no
Brasil.
Segundo, o argumento das “pedaladas fiscais” não é suficiente para um
impeachment, pois não posso afastar um presidente (a mais brutal de todas as
penas) por práticas admitidas anteriormente e, principalmente, praticadas
atualmente por outros membros do poder executivo sem maiores consequências. Por
fim, não é possível afastar a presidente e empossar um senhor que assinou, na
condição de presidente em exercício, decretos similares aos que levaram a
presidente a perder o cargo.
Em 2013, em uma impressionante demonstração de
vitalidade popular, o país deixou claro que procurava reinventar sua democracia
e seu modelo de desenvolvimento econômico. Três anos depois, a casta política
nacional, com sua capacidade ímpar de sobrevivência, foi capaz de produzir uma
espécie de “contrarrevolução” na qual ela se conserva, chama para o governo
aqueles que perderam todas as últimas eleições de que participaram e fornece,
em troca, o sacrifício de seu sócio mais novo para saciar a ira de uma parte da
população.
Imaginar que todo o país se unirá na celebração desta farsa é não
entender nada da história que se abre a partir de agora.
Vladimir Safatle é professor de
filosofia da USP.
Bom texto de Safatle, como sempre muito lúcido. Mas acho que caberia uma critica ao PT pela forma como conduz esse processo de impeachment, inclusive praticando o tama lá da cá no congresso. Está fazendo novamente o que sempre criticou nos outros partidos.
ResponderExcluirPaulo Campos.
Correta observação Paulo, concordo com você.
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