domingo, 9 de outubro de 2011

O verbo "roubar"

Chico Alencar - O Globo - 05/09/2011

“Perdi o bonde e a esperança. Volto pálido para casa. A rua é inútil e nenhum auto passaria sobre meu corpo.”

(Carlos Drummond de Andrade, Soneto da Perdida Esperança – 1934)

O desastre do bondinho de Santa Teresa, no Rio, é tragédia e metáfora. Mesmo sucateado pela omissão criminosa das autoridades e pela fadiga de materiais, o “bonde Brasil” prossegue: alguns parecem acordar para a mobilização contra a corrupção. Para ser transformadora, porém, toda justa indignação precisa de trilhos e trajeto. Um bonde percorre etapas até chegar ao destino final.

Padre Vieira, no século XVII, clamou: “Aqui se conjuga o verbo roubar em todos os tempos, modos e lugares.” O sistema colonial, fundado no latifúndio, na escravidão e na dependência externa, que continuou no Império, produzia corrupção larvar, derivada do mandonismo local. A República ainda não superou muitas dessas práticas patrimonialistas.

A história ensina que corrupção não se combate com “vassouradas” a la Jânio e “caçadas a marajás” estilo Collor. Corruptores - tão pouco mencionados - e seus beneficiários, os corruptos, são como mofo e bolor: só a luz do sol os afeta. Esta é uma primeira exigência, a estação inicial: transparência total nas atividades públicas e acompanhamento pari passu dos eleitos, com controle social de seus atos. A crescente autonomização do Poder Público em relação à sociedade é a morte da democracia.

Órgãos de controle existem: tribunais de contas, controladorias, legislativos. Quantos exercem, com eficácia, essas funções? Daí o imperativo de constituí-los com quadros técnicos competentes e dirigentes dotados de espírito público, sem corporativismos. O compadrio risonho precisa ser retirado do bonde onde está aboletado, viajando gratuitamente, há séculos. A impunidade, força motriz das trombadas contra o interesse público, gera prejuízos nunca ressarcidos: a Advocacia Geral da União só recuperou 7% do que foi subtraído, na última década.

A Educação, como os Arcos da Lapa, é o caminho para se alcançar áreas mais elevadas? Sim, desde que ela não continue, como o antigo aqueduto, com suas telas de proteção furadas: profissionais mal remunerados, sem atualização adequada, e gestões centralizadas, autoritárias. Não é admissível que de cada R$10 investidos no setor apenas R$1 chegue na atividade fim, o encontro vivificante da sala de aula. Clama-se, com razão, por 10% do PIB para a Educação já, sem desvios!

É indispensável também profunda reforma do nosso sistema político, que perde credibilidade com tantas legendas de aluguel, entre as quais "novas" já carregadas das velhas fraudes, e grandes partidos acometidos de nanismo moral. “Não, não nos representam”, cantam os jovens na Puerta Del Sol, em Madri. Esse clamor está chegando aqui.

Reforma política não existirá sem uma nova consciência cidadã, que desmercantilize o voto. E sem campanhas austeras, em torno de projetos e causas, e não de favores ou promessas enganosas anunciadas em marketings milionários. Nenhuma política pública se sustenta com uma estrutura administrativa que dá ao Executivo federal 25 mil cargos de livre nomeação – usados, em geral, para barganhas partidárias menores, como nos estados. Nem com pagamento de juros e amortização da dívida, que comprometerão 47,5% do Orçamento deste ano. Financeirização da economia e corrupção têm parentesco.

Só discernindo quem é quem nessa viagem poderemos chegar às esperanças recuperadas de Drummond, em 1934: “Vou subir a ladeira lenta em que os caminhos se fundem. Todos eles conduzem ao princípio do drama e da flora.(...) Há muito tempo nós gritamos: sim! Ao eterno.”

CHICO ALENCAR é deputado federal (PSOL/RJ).

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