terça-feira, 21 de abril de 2015

A VONTADE DO SENHOR




A VONTADE DO SENHOR

O pensamento autoritário está enraizado nas mentes da sociedade brasileira. Ele se explica, entre outras coisas, pela forma como o país foi colonizado: segundo o modelo da grande propriedade, da monocultura e do trabalho escravo. Da dualidade “senhor-serviçal”. Os do andar de cima e os do andar de baixo. Dessa maneira, aquele que tem propriedades é sempre o senhor. Os outros lhe devem o emprego e a subsistência e transformam essa gratidão em subserviência.

O senhor manda nas instituições do Estado porque escolhe os governantes. Quer que o Estado, suas instituições e sua leis o protejam e, especialmente, protejam os seus direitos enquanto proprietário. Como proprietário, o senhor dispõe de coisas pouco acessíveis aos outros: boa escola, serviços médicos, transporte, moradia, eletrodomésticos de qualidade. O senhor, mesmo quando frequenta a igreja, não sonha em compartilhar um milímetro de seus benefícios com os demais.

Afinal, essa sua diferença com os outros é que faz dele o senhor. Por isso ele se irrita quando vê que esses outros, os do andar de baixo, subiram um degrau, estão tendo facilidades pra ter uma casa ou um carro, financiamento para fazer faculdade, um salário que volta a comprar o que o avô comprava 50 anos atrás. Aí o senhor conclui que o governo não administra o Estado como deveria, ou seja, de um modo que garanta os seus direitos de senhor e a diferença entre ele e o serviçal, que também pode ter direitos, mas nem tanto.

E reclama da corrupção, como se ela fosse alguma novidade. Reclama da falta de segurança, esquecido de que a desigualdade é a maior culpada da violência. Pede a volta da ditadura, sem lembrar que tinha muita corrupção naquele tempo (pesquisem sobre os escândalos da Lutfalla, Capemi, Delfin, Banco Econômico e outros que a censura não deixava noticiar). Pede que a polícia desça o pau em grevistas, socialistas, sem teto, sem terra, a turma do passe-livre e todos os simpatizantes destes.

É que eles afrontam o poder do senhor, questionam a sua propriedade e os seus benefícios, julgam-se com direito a isso também, ora... Então é preciso enquadrar essa gente. E nada melhor do que ameaçá-los com pancada e prisão. Vão mal na escola, não arrumam bons empregos, não fazem três refeições por dia, daí partem pro crime? Pau neles! Menores de dezoito anos barbarizam por aí, dão rolezinho em shopping, vendem drogas pra classe média, roubam e dá muito trabalho aplicar o ECA? Abaixa a maioridade penal e cana neles! Já que podem votar, podem ir pra cadeia.

Polícia e penitenciárias, eis a solução. O senhor vai se sentir mais seguro assim, com o serviçal enquadrado. Serviçal é serviçal, tem que saber o seu lugar. E se começar a ter o mesmo que eu, “quem vai trabalhar pra mim?”, pergunta o senhor. O senhor pensa de um jeito autoritário, afinal, ele é o senhor. Foi desde o tempo do pau-brasil, do engenho de cana, das minas de ouro, dos cafezais – e continua sendo nas fábricas que utilizam trabalho escravo de africanos e bolivianos.

Para o pensamento autoritário, o mundo se divide entre bons e maus, gente de bem e gentinha, pessoas responsáveis e marginais, esforçados e vagabundos, inteligentes e burros. O pensamento autoritário acha que dizer “eu tenho mais dinheiro que você” é um bom jeito de encerrar uma discussão. O pensamento autoritário, que o rico educa o pobre (que ele chama de “humilde”) a também ter, ensina que alguém, por seu título, suas propriedades e sua pose, tem todo o direito de ser atendido melhor numa loja, num banco, num hospital. Aí esse “humilde” fica pensando que ter um pouquinho mais de recursos do que o pai dele teve, embora continue sendo explorado, significa que é possível, ralando muito e se lixando pros outros, se dar bem no sistema e que sucesso resume-se a isso. E que é a coisa mais natural do mundo alguém ser chamado de doutor, mesmo que não o seja, pelo manobrista do estacionamento, dependendo do preço do carro que esteja dirigindo.

A desigualdade é uma droga, é a mãe da discriminação, mas é o que assegura que o senhor continue senhor. Então, quando se sente em perigo, o senhor organiza uma passeata, querendo mudar as leis e o governo e usa a corrupção como pretexto. Claro que sem aprofundar muito, porque ele bem que aceita uma vantagenzinha naquela licitação, um favorzinho do fiscal, o guarda fingindo que não vê a infração, uma assessoria pro filho... E por aí vai. E se o serviçal está dando trabalho, roubando pra ter aquilo que a TV diz que ele precisa ter, e fazendo isso cada vez mais jovem, o senhor pede pra reduzir a idade com que esse jovem pode ser mandado para uma penitenciária.

Para o senhor, a questão não é a idade, não é a maturidade, e sim que o jovem está roubando e tirando o seu sossego. O jovem que rouba faz parte daquela gentinha. Se as crianças também começarem a roubar, o senhor vai querer abaixar a maioridade até níveis uterinos. O senhor não vai pra rua se manifestar, mas dá as palavras de ordem, fornece os recursos, anuncia pela mídia, faz a propaganda da coisa. Quem vai pra rua são os admiradores do senhor, os aspirantes a senhor, os que querem manter as regras do jogo pra um dia também virarem senhor, achando sinceramente que conseguirão.


E é preciso afugentar quem atrapalha esse sonho, daí essa gente de bem pede renúncia da presidente e passagem só de ida pra Cuba para os cinquenta e tantos milhões de brasileiros que votaram nela. Como se coubessem lá. Pede não, exige. E também é preciso deixar de lado aqueles assuntos desagradáveis que envolvem os seus aliados. Daí fingem não lembrar o escândalo dos trens, do HSBC, a falta de água, um certo aeroporto em Minas e a proliferação da dengue. Abraçam policiais, não quebram nada. São bons moços com amnésia.

Essa gente boa tem aquele pensamento autoritário, acha que sabe das coisas e que, como quase sempre aconteceu, pode impor a sua vontade, na lei ou na marra. Amanhã vão exigir a privatização da água e, se não ficar chato, dos raios de sol. O senhor, na verdade, não precisa das manifestações, porque ele já está no governo, no Ministério da Fazenda, no da Agricultura. No fundo, ele não quer, nem precisa, tirar a presidente. As manifestações funcionam como uma espécie de festa motivacional para os seus admiradores, um hapenning dominical, e demonstração de força para os não admiradores, um alerta do tipo ó, tamos aí. É isso e só isso. E pelo jeito vamos ter mais do mesmo.

O senhor diverte os seus amigos e deixa que estes escrachem os serviçais. É tudo parte do jogo e daquele pensamento autoritário, temperado em séculos de poder quase absoluto: o senhor do engenho, ou da tecelagem que escraviza estrangeiros, não cede nada, não divide nada, não se sente igual aos outros, odeia a proximidade com o serviçal e morre de medo que o garoto da periferia seja colega de faculdade de sua filha. Os admiradores do senhor e os aspirantes a senhor aprendem tudo isso com ele e reproduzem a lição até melhor do que o professor. E la nave và.


Plínio Gentil é professor universitário de Direito e procurador de justiça do Ministério Público de São Paulo.

3 comentários :

  1. Escrevo para pessoas que ainda não tem consciencia sobre política, raças e classes. Essa poesia estará em meu próximo livro Não se deixe Manipular".

    Cada classe defende seus interesses

    No Brasil, 98% dos meios de comunicação
    Ou seja, rádios, revistas, jornais e redes de televisão
    São administradas por famílias da burguesia
    Que defende o interesse dessas famílias
    Que são bem diferentes dos interesses do povo, que é maioria

    É claro que elas não defendem os objetivos delas abertamente
    Porque precisam do nosso voto e da audiência, por isso manipulam diariamente
    Elas até exibem programas e reportagens que são boas pra gente
    Mas no assunto política que é super importante
    Elas manipulam o povo descaradamente

    O dinheiro tem mais valor que o ser humano, no capitalismo
    Por esse motivo, milhões de injustiças e crimes são cometidos
    Esse sistema não dá valor ao pobre e supervaloriza os ricos
    Nos Paraísos Fiscais, o dinheiro sujo é bem protegido
    Para criminosos de todo tipo, isso é um grande incentivo

    Além de lutar contra essas patifarias dos capitalistas
    O ser humano tem mais valor que o dinheiro para os socialistas
    Portanto essa ideologia é a melhor para o povo que é a maioria
    Mas por causa da manipulação, principalmente das TVs da burguesia
    Poucas pessoas do povo sabem dessa verdade e muitos votam nos capitalistas

    Problemas que prejudicam o povo, dificilmente têm solução definitiva
    E grande parte deles são apenas empurrados com a barriga
    Por que a maioria dos políticos eleitos são capitalistas
    Que valorizam mais os ricos do que o povo, que é a maioria
    Apesar de o pobre pagar, proporcionalmente, mais impostos que a burguesia

    Ditaduras são horríveis, cometem muitas injustiças
    Mas existem grandes diferenças entre as duas ideologias
    As ditaduras capitalistas, como a que existiu no Brasil e na América Latina
    Não toleram os socialistas, porque esses defendem o povo, que é a maioria
    E as ditaduras socialistas, não aceitam os capitalistas, que defendem a burguesia

    Na política, os capitalistas são à direita e os socialistas são à esquerda
    Esses lados foram definidos logo após a revolução francesa
    Nem todo político de partido socialista defende o povo, são os oportunistas
    O voto do pobre tem o mesmo valor que o voto do rico, na democracia
    Em uma eleição, democrática e pacífica, o povo pode vencer, somos a maioria.

    ALMÉRIO BARBOSA

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  2. O texto é de uma precisão e lucidez que impressiona. Parabéns Leitão, pela sua pesquisa e assim nos brindar com leituras tão esclarecedores.
    Paulo Campos.

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    1. Valeu amigo Paulo. A intenção é esta, partilhar informações e opiniões.
      Abraço.

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