segunda-feira, 27 de outubro de 2014

UMA NOTA SOBRE CAPITALISMO E DEMOCRACIA




Uma nota sobre democracia e capitalismo

“As pessoas vêm ao mundo em uma sociedade cujas normas e relações parecem tão fixas e imutáveis quanto o céu que nos protege. O “senso comum” de uma época se faz saturado de uma ensurdecedora propaganda do status quo, mas o elemento mais forte dessa propaganda é simplesmente o fato da existência do existente.”
E. P.Thompson

“Democracia” é um termo que está em constante disputa. Ele é formalmente entendido como positivo pela esquerda e pela direita, mas seu significado é bastante variável. A nossa ditadura empresarial-militar (1964-1985) muito pouco se assumiu como ditadura e se justificava como garantidora democrática. Se “democracia” é uma bandeira erguida pela militância dos direitos humanos contra o massacre à população pobre, também é o termo que escolheu um dos principais redutos do ruralismo pistoleiro brasileiro, o DEMOCRATAS (ex-PFL). Setores mais progressistas pontuam que sem saúde e educação não há democracia, enquanto outros reduzem seu significado à possibilidade de voto. Diante desse leque, parece que o mais fundamental é reparar que a noção de democracia mais difundida não considera algumas dinâmicas capitalistas centrais da constituição do mundo.

Talvez essa dificuldade na concepção de democracia se dê porque o que é referente ao capitalismo seja majoritariamente entendido como algo econômico em sentido restrito: o pensamento mais forte na nossa sociedade separa o “econômico” do “político”, pondo-os como esferas que, embora intercomunicáveis, são isoladas. Ou seja, aquilo que é “econômico” aparece como espaço não político e fundamentalmente privado. Comprar uma casa, o bilhete do metrô, investir na poupança ou receber um salário parecem apenas trocas comerciais e livres entre indivíduos. Mas não se precisa pensar tanto para enxergar que o “econômico”, longe de ser formado meramente pelo intercâmbio entre contratantes, não está isento de várias relações de poder.

Uma das características centrais do capitalismo não computadas nas formulações sobre democracia é a constituição da classe trabalhadora, algo que, antes de ser o orgulho de alguém, significa a desgraça de nós todos: o fato de que estamos excluídos de reger a vida social em um nível fundamental de sua organização, que é o da produção das coisas, aparecendo apenas como indivíduos despossuídos de meios de produção que precisam vender sua força de trabalho a outrem. Isso significa um mundo fora do controle organizado, consciente e planejado dos trabalhadores, que tem hoje como uma de suas consequências mais alarmantes a possível destruição da capacidade humana de residir no planeta.

Essa nossa condição alienada tem sido potencializada nos últimos anos pela inédita escalada de concentração, como demonstra relatório divulgado em Davos: 85 pessoas detém 46% da riqueza mundial – ou, em outro dado, 174 empresas controlam 40% da economia mundial. Essa condição de trabalhadores também significa uma profunda subordinação a uma lógica desumanizadora, como se vê pela grande porcentagem de tempo de vida dedicada a atividades que, para a maioria, são repetitivas e possuem pouco ou nenhum significado pessoal, só adquirindo sentido e suportabilidade diante mesmo da necessidade de sobrevivência.

Tratam-se de questões que estão além do que, midiática e burguesamente, são entendidas como intempéries do mercado de trabalho ou subdesenvolvimentos deste ou daquele aspecto. Dizem respeito à constituição tão básica do mundo que parecem uma decorrência da própria natureza das coisas. Por isso mesmo, não parecem ter nenhum remédio prático ou se quer aparecem como problemas. Não constituem uma questão de “democracia”, nem mesmo no nível do pensamento, e isso revela o baixíssimo nível de expectativas políticas que hoje temos. Em um momento em que o progressismo brasileiro está identificado com dilmas e marinas, ter uma concepção verdadeira e uma discussão consequente sobre democracia soam como impróprio, etéreo, inútil (como esse texto no primeiro dia pós-eleição). Não seria isso justamente uma marca de nossas profundas submissão e derrota?

Wesley Carvalho é professor e historiador.

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