"UMA IDEIA TORNA-SE UMA FORÇA MATERIAL QUANDO GANHA AS MASSAS ORGANIZADAS".
Karl Marx
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
O CANTO DAS SEREIAS
Ei-lo: o Partido do Movimento Democrático Brasileiro à frente das duas casas congressuais: o Senado (Renan Calheiros) e a Câmara dos Deputados (Eduardo Cunha?). Nem na Roma antiga, republicana, tal fenômeno parecia possível. Em nome da divisão de poderes, as famílias nobres cultuavam a diversidade como antídoto ao absolutismo. Aqui não; a cobra fuma e não expira.
O PMDB terá, a partir de 2015, uma bancada de 19 senadores, 66 deputados federais e governará 7 estados. De fato, é um partido repartido em tendências inclusive antagônicas. Nele há de tudo, desde o testemunho ético de um Pedro Simon às recorrentes denúncias de corrupção que historicamente pesam sobre alguns de seus líderes. Ele pratica, mais que a democracia, a demoarquia, originária do verbo grego archein, que significa ser o primeiro, estar à frente, no sentido de comandar processos.
Ora, pra que plebiscitos se, há décadas, vivemos no regime parlamentarista? O PMDB exerce a função de primeiro-ministro, o Executivo preside. Ou quem sabe estamos, sem nos dar conta, em plena monarquia! A família peemedebista se sucede nas instâncias do poder com direito a conceder a correligionários e aliados cargos e prebendas.
Não importa que os discursos sejam outros. Na Inglaterra, enquanto o parlamento grita, a rainha reina. Aqui, idem. Haja o que houver, estamos em mãos do mais despudorado fisiologismo, cujos discursos sobrevoam eloquentemente as práticas do clientelismo e do compadrio. Se o mundo gira e a Lusitana roda, os governos se sucedem e o PMDB impera. Hay gobierno, soy a favor, grita a ala dos peemedebistas acostumada a mamar nas tetas da máquina pública...
Coitado do doutor Ulysses Guimarães e toda a sua luta por uma democracia participativa! Conta Homero, na “Odisseia”, que Ulisses encontrou na Ilha das Sereias curiosas criaturas com cabeças e vozes de mulheres, mas com corpos de pássaros que, com doces canções, atraíam marinheiros ao encontro das rochas. Quando o barco se aproximou, uma calmaria se abateu sobre o mar, e a tripulação utilizou os remos.
De acordo com as instruções de Circe, Ulisses tampou os ouvidos da tripulação com cera, enquanto ele próprio foi amarrado ao mastro, de modo que pudesse ouvir a canção e passar a salvo pelo perigo. "Aproxime-se Ulisses!", cantavam as Sereias. Ulisses resistiu, mas quantos, a bordo do transgoverno chamado PMDB, são capazes de tapar os ouvidos ao canto das sereias?
Narra ainda Homero que Penélope, fiel esposa, rechaçou todos os pretendentes, até que surgisse um homem capaz de atirar com o arco de Ulisses. Nenhum deles conseguiu. Até o dia em que um mendigo tomou em mãos o arco, retesou-o e, na mesma hora, Penélope reconheceu nele seu amado Ulisses.
A democracia brasileira espera, como Penélope, o dia em que poderá reconhecer sua plenitude na inclusão social daqueles que, hoje, se nos apresentam como o maltrapilho Ulisses.
Frei Betto é escritor.
www.correiodacidadania.com.br
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