domingo, 25 de maio de 2014

A COPA DE 2014 A CRISE BRASILEIRA




As grandes manifestações que tomaram as ruas do Brasil em junho de 2013 subverteram o lugar reservado na história para o ano de 2014 no país. Em 2007 quando o Brasil foi oficialmente confirmado como país-sede da Copa do Mundo de Futebol da FIFA (Federação Internacional de Futebol Associado), as promessas de que o megavento deixaria um grande legado de desenvolvimento urbano e social com pesados investimentos privados e sem desembolso de verbas públicas parecia apontar para a coroação do discurso que previa uma década de vigoroso crescimento econômico de um país protegido da imensa crise que naquele ano já começava a assombrar Estados Unidos e Europa.

Hoje, a menos de dois meses do início dos jogos, o cenário do “país do futebol” é de profunda instabilidade social e política com reflexo em uma enorme e em certa medida inesperada crítica negativa à realização da Copa do Mundo. À rejeição popular aos gastos estratosféricos com obras atrasadas, superfaturadas e ineficazes, à ausência quase absoluta do legado social prometido, às mortes de operários nos estádios e à ingerência completa da FIFA na política nacional, soma-se a realidade de cidades conflagradas, alta no custo de vida e serviços públicos sucateados. Desde junho de 2013 eclodem diariamente manifestações populares das mais diversas, de ocupações de imóveis urbanos, a atos de contra a Copa e inúmeras greves. As Jornadas de Junho não só demoliram a aura de estabilidade social, política e econômica dos edifícios teóricos forjados pelos governos Lula e Dilma para sustentar o chamado neodesenvolvimentismo brasileiro. Elas também explicitaram o esgotamento de um projeto que, longe de romper com as estruturas do modelo neoliberal que cresceu no país na década anterior, reforçou seus principais pilares, propagando a falsa ideia de que seria possível blindar o Brasil contra a crise econômica internacional a partir de um pacto conservador de classes amparado por um lado na tentativa de apaziguar os conflitos sociais e combater a pobreza extrema a partir de políticas compensatórias e incentivo ao consumo e ao crédito e, por outro lado, no fortalecimento da ortodoxia econômica que permitiu a lucros recordes para bancos, agronegócio e setor imobiliário nacionais.

A realização da Copa do Mundo tem exposto as fraturas mais profundas do “modelo brasileiro” e evidenciado uma crise já instalada que tende a avançar. As obras da Copa, inscritas como parte do segundo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – eixo dos últimos dois governos brasileiros – revelam que o estímulo fetichista ao crescimento econômico a todo custo ao invés de ser o oposto da crise econômica é parte fundamental de seu desenvolvimento por outros meios, aprofundando um processo de acumulação baseado principalmente no aumento a espoliação urbanai. Combinada a isso, ainda que não estejamos na mesma situação econômica de países onde a crise provocou austeros ajustes contra sua população, a dinâmica da economia não só não está imune como já apresenta elementos da estagnação e os megaeventos têm sido importantes vetores de “importação” desse estado crítico dos países centrais.

O Brasil da Copa, a crise que já existe e a que pode vir.

Pensando no conjunto dessa análise não podemos deixar de encontrar similaridades com o desenvolvimento da formação social brasileira. Credenciado pelo forte padrão exportador de produtos primários, pelos índices de consumo interno baseados em largo estímulo ao crédito e pela ortodoxia da política econômica o país tornou-se importante referência para investimentos na economia mundial em crise e atraente para que se efetivasse o pleito de sede para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Ao mesmo tempo, grandes projetos de reestruturação do território referentes às obras urbanas e de infraestrutura – como a transposição do Rio São Francisco, as usinas hidrelétricas Girau, Santo Antônio e Belo Monte e o Programa Minha Casa, Minha Vida – feitos em geral com parcerias público-privadas ou mesmo privatizações e concessões foram colocados em curso com os PACs.
Se tal cenário permitiu por um lado a ascensão de um discurso apologético do neodesenvolvimentismo brasileiro legitimado internacionalmente, por outro também se baseou na completa incapacidade de oferecer alternativas de transformação mais profundas, resumindo a ascensão social dos mais pobres à ampliação do consumo e de alguns programas sociais parciais e deixando de lado qualquer mudança mais estrutural no trágico quadro dos serviços públicos. Dessa forma, o aumento real do salário proporcionado por uma mão era retirado por outra, especialmente a partir da precária condição de vida nas grandes metrópoles nacionais que viram o boom imobiliário multiplicar o preço dos aluguéis, aumentar a segregação urbana por meio da expulsão dos pobres para as periferias e gerar maior pressão nos já precários serviços de transportes, saneamento básico, segurança, saúde e educação.

A Copa do Mundo intensifica a espoliação com dezenas de milhares de famílias removidas de suas casas, gastos públicos astronômicos e incentivo a obras atrasadas e que aprofundam a segregação urbana nas cidades-sede e indícios de pesados superfaturamentos e corrupção. Esse quadro se agrava pelo aparato jurídico de exceção imposto pela FIFA que envolve a criação de normas que garantem imunidade jurídica e ingerência da entidade no território, apropriação privada de espaços públicos por meio de zonas de exclusão, regime de contratação que facilita o superfaturamento, tribunais de exceção e mais recentemente estão em discussão leis antiprotestos combinadas à aquisição de enorme aparato de segurança mobilizado para os jogos.

Na contramão das promessas, é possível que o legado da Copa seja fundamentalmente essa combinação da espoliação e da exceção nas cidades. Mas não “só” isso. Como parte dos mecanismos de exceção está também a possibilidade de ampliação do endividamento dos municípios, o que já tem ocorrido nos últimos dois anos quando o aumento médio da dívida pública das cidades-sede é superior ao dobro daquele das capitais sem Copa. Somados aos outros gastos com estruturas temporárias e permanentes e pensando em um cenário de queda no crescimento econômico, retração industrial e diminuição da confiança do mercado financeiro com queda no grau de investimento do país, há uma tendência evidente à importação da crise dos países centrais para o Brasil. Cabe especialmente às ruas encontrar novamente uma alternativa a esse caminho.

Maurício Costa de Carvalho é geógrafo e pós-graduando em Geografia Humana na Universidade de São Paulo onde estuda os impactos da Copa na regulação do território brasileiro e as normas de exceção.

Um comentário :

  1. A melhor análise que li até agora sobre a copa e suas repercussões e consequências.
    Rodrigo Paiva.

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