"UMA IDEIA TORNA-SE UMA FORÇA MATERIAL QUANDO GANHA AS MASSAS ORGANIZADAS".
Karl Marx
terça-feira, 27 de maio de 2014
ALGUMAS IDEIAS SOBRE O CAPITAL DE PIKETTY, POR DAVID HARVEY
Algumas ideias sobre o Capital de Piketty, por David Harvey.
Thomas Piketty escreveu um livro chamado Capital que causou grande celeuma. Ele mostra estatisticamente (e estamos em dívida com ele e seus colegas por isso) que o capital tendeu, através da história, a produzir níveis cada vez maiores de desigualdade. Mas, a sua explicação de porque as tendências à desigualdade e à oligarquia surgem está seriamente comprometida. E ele certamente não produziu um modelo de trabalho para o capital do século 21.
Thomas Piketty escreveu um livro chamado Capital que causou grande celeuma. Ele defende a taxação progressiva e a tributação da riqueza global como único caminho para deter a tendência à criação de uma forma “patrimonial” de capitalismo, marcada pelo que chama de uma desigualdade “apavorante” de riqueza e rendimento. Também documenta com detalhes excruciantes, e difíceis de rebater, como a desigualdade social de ambos, riqueza e rendimento, evoluíram nos últimos dois séculos, com ênfase particular no papel da riqueza. Ele aniquila a visão, amplamente aceite, de que o capitalismo de livre mercado distribui riqueza e é o grande baluarte para a defesa das liberdades individuais. Piketty demonstra que o capitalismo de livre mercado, na ausência de uma grande intervenção redistributiva por parte do Estado, produz oligarquias antidemocráticas. Essa demonstração deu base à indignação liberal e levou o Wall Street Journal à apoplexia.
O livro tem sido frequentemente apresentado como substituto para o século 21 do trabalho de Marx sobre o século 19, que tem o mesmo título. Piketty nega que fosse essa a sua intenção, na verdade – o que parece certo, uma vez que seu livro não é, de modo algum, sobre o capital. Ele não nos conta por que razão ocorreu a catástrofe de 2008, e por que está a demorar tanto para tanta gente se levantar, sob o fardo do desemprego prolongado e da execução da hipoteca de milhões de casas. Ele não nos ajuda a entender por que o crescimento é tão medíocre hoje nos EUA, em oposição à China, e por que a Europa está travada sob uma política de austeridade e uma economia de estagnação.
O que Piketty mostra estatisticamente (e estamos em dívida com ele e seus colegas por isso) é que o capital tendeu, através da história, a produzir níveis cada vez maiores de desigualdade. Isso, para muitos de nós, não é novidade. Além disso, é exatamente a conclusão teórica de Marx, no primeiro volume da sua versão do Capital. Piketty fracassa em observar isso, o que não é surpresa, já que sempre clamou, diante das acusações dos média de direita de que é um marxista disfarçado, que não leu O Capital de Marx.
Piketty reúne uma grande quantidade de dados para sustentar a sua argumentação. A sua descrição das diferenças entre rendimento e riqueza é persuasiva e útil. E faz uma defesa cuidadosa da tributação sobre as heranças, do imposto progressivo e de um imposto sobre a riqueza global como possíveis (embora que certamente politicamente inviáveis) antídotos contra o avanço da concentração de riqueza e poder.
Mas, por que razão ocorre essa tendência para o crescimento da desigualdade? A partir dos seus dados (temperados com ótimas alusões literárias a Jane Austen e Balzac), ele deriva uma lei matemática para explicar o que acontece: o contínuo aumento da acumulação de riqueza por parte do famoso 1% (termo popularizado graças, claro, ao movimento Occupy) é devido ao simples facto de que a taxa de retorno sobre o capital (r) sempre excede a taxa de crescimento do rendimento (g). Isso, diz Piketty, é e sempre foi “a contradição central” do capital.
Mas esse tipo de regularidade estatística dificilmente alicerça uma explicação adequada, quanto mais uma lei. Então, que forças produzem e sustentam tal contradição? Piketty não diz. A lei é a lei e isso é tudo. Marx obviamente teria atribuído a existência de tal lei ao desequilíbrio de poder entre capital e trabalho. E essa explicação ainda é válida. A queda constante da participação do trabalho no rendimento nacional, desde os anos 1970, é decorrente do declínio do poder político e económico, à medida que o capital mobilizava tecnologia, desemprego, deslocalização de empresas e políticas anti-laborais (como as de Margaret Thatcher e Ronald Reagan) para destruir qualquer oposição.
Como Alan Budd, um conselheiro económico de Margaret Thatcher, confessou num momento de descuido: as políticas anti-inflação dos anos 1980 mostraram-se “uma maneira muito boa de aumentar o desemprego, e aumentar o desemprego era um modo extremamente desejável para reduzir a força das classes trabalhadoras… o que foi construído, em termos marxistas, como uma crise do capitalismo que recriava um exército de mão de obra de reserva, possibilitou que os capitalistas lucrassem mais do que nunca.” A disparidade entre a remuneração média dos trabalhadores e dos executivos-chefes era de cerca de trinta para um em 1970. Hoje está bem acima de trezentos para um e, no caso do MacDonalds, de cerca de 1200 para um.
Mas no segundo volume do Capital de Marx (que Piketty também não leu, como alegremente declara) Marx apontou que a tendência do capital de rebaixar os salários iria, em algum momento, restringir a capacidade do mercado de absorver os produtos do capital.
Henry Ford reconheceu esse dilema há muito tempo, quando determinou o salário de cinco dólares para o dia de oito horas dos trabalhadores – para aumentar a procura dos consumidores, disse.
Muitos pensavam que a falta de procura efetiva estava na base da Grande Depressão da década de 1930. Isso inspirou políticas expansionistas keynesianas depois da Segunda Guerra Mundial e resultou em alguma redução das desigualdades de rendimento (nem tanto da riqueza), no meio de uma forte procura que levou ao crescimento. Mas essa solução apoiava-se no relativo empoderamento do trabalho e na construção do “estado social” (termo de Piketty) financiado pela taxação progressiva. “Tudo dito”, escreve ele, “durante o período de 1932-1980, durante cerca de meio século, o imposto de rendimento federal mais alto, nos EUA, era em média 81%.” E isso de modo algum prejudicou o crescimento (outra parte das evidências de Piketty, que rebate os argumentos da direita).
Ali pelo final dos anos 1960, ficou claro para vários capitalistas que eles precisavam fazer alguma coisa a respeito do excessivo poder do trabalho. Por isso, Keynes foi excluído do panteão dos economistas respeitáveis, houve uma deslocação para o lado da oferta e para o pensamento de Milton Friedman, e teve início uma cruzada para estabilizar, se não para reduzir a tributação, desconstruir o Estado social e disciplinar as forças do trabalho. Depois de 1980, houve uma queda nas taxas mais altas de imposto e os ganhos do capital – uma grande fonte de rendimento dos ultra-ricos – passaram a ser tributados por taxas muito menores nos EUA, aumentando enormemente o fluxo de capital do 1% do topo da pirâmide.
Contudo, o impacto no crescimento era desprezível, mostra Piketty. Tal “efeito cascata” de benefícios dos ricos no restante da população (outra crença favorita da direita) não funcionou. Nada disso era ditado por leis matemáticas. Tudo era política.
Mas então a roda deu uma volta completa, e a pergunta mais importante tornou-se: e onde está a procura? Piketty ignora essa questão. Os anos 1990 encobriram essa resposta com vasta expansão do crédito, inclusive estendendo o financiamento hipotecário aos mercados subprime. Mas o resultado foi uma bolha de ativos fadada a estourar, como aconteceu em 2007-2008, levando consigo o banco de investimento Lehman Brothers, juntamente com o sistema de crédito. Entretanto, as taxas de lucro e a consequente concentração de riqueza privada recuperaram muito rapidamente depois de 2009, enquanto todos os outros continuavam muito mal. As taxas de lucro das empresas estão agora tão altas quanto sempre estiveram nos EUA. As empresas estão sentadas sobre grande quantidade de dinheiro e recusam-se a gastá-lo, porque as condições do mercado não estão robustas.
A formulação da lei matemática de Piketty camufla, mais do que revela sobre as políticas de classe que estão em jogo. Como notou Warren Buffett, “claro que há luta de classes, e é a minha classe, a dos ricos, que está a lutar, e estamos a vencer.” Uma medida-chave da sua vitória são as crescentes disparidades de riqueza e rendimento do 1% do topo em relação a todo o resto da população.
Há, contudo, uma dificuldade central no argumento de Piketty. Ele repousa sobre uma definição equivocada de capital. Capital é um processo, não uma coisa. É um processo de circulação no qual o dinheiro é usado para fazer mais dinheiro, frequentemente – mas não exclusivamente – por meio da exploração da força de trabalho. Piketty define capital como o stock de todos os ativos em mãos de particulares, empresas e governos que podem ser negociados no mercado – não importa se estão a ser usados ou não. Isso inclui terra, imóveis e direito de propriedade intelectual, assim como coleção de arte e de joias. Como determinar o valor de todas essas coisas é um problema técnico difícil, sem solução consensual. Para calcular uma taxa de retorno, r, significativa, temos de ter uma forma de avaliar o capital inicial. Não há como avaliá-lo independentemente do valor dos bens e serviços usados para produzi-lo, ou por quanto ele pode ser vendido no mercado. Todo o pensamento económico neoclássico (base do pensamento de Piketty) está fundado numa tautologia.
A taxa de retorno do capital depende essencialmente da taxa de crescimento, porque o capital se valoriza na base do que produz e não pelo que utilizou para a sua produção. O seu valor é fortemente influenciado por condições especulativas, e pode ser seriamente distorcido pela famosa “exuberância irracional” que Greenspan supôs detetar como característica dos mercados imobiliário e de ações. Se subtrairmos habitação e imóveis – para não falar do valor das coleções de arte dos hedge funders– a partir da definição de capital (e a razão para a sua inclusão é bastante débil), então a explicação de Piketty para o aumento das desigualdades de riqueza e rendimento desabaria, embora a sua descrição do estado das desigualdades passadas e presentes ainda ficassem de pé.
Dinheiro, terra, imóveis, fábricas e equipamentos que não estão a ser usados produtivamente não são capital. Se é alta a taxa de retorno sobre o capital que está a ser usado é porque uma parte do capital foi retirado de circulação e, de facto, está em greve. Restringir a oferta de capital para novos investimentos (fenómeno que estamos a testemunhar agora) garante uma alta taxa de retorno sobre o capital que está em circulação. A criação dessa escassez artificial não é só o que fazem as companhias de petróleo, para garantir a sua elevada taxa de lucro: é o que todo o capital faz quando tem oportunidade. É o que sustenta a tendência de a taxa de retorno sobre o capital (não importa como é definido ou medido) exceder sempre a taxa de crescimento do rendimento. Esta é a forma como o capital garante a sua própria reprodução, não importa quão desconfortáveis sejam as consequências para o resto de nós. E é assim que a classe capitalista vive.
Há muitas outras coisas valiosas nos dados coletados por Piketty. Mas, a sua explicação de porque as tendências à desigualdade e à oligarquia surgem está seriamente comprometida. As suas propostas de solução para a desigualdade são ingénuas, se não utópicas. E ele certamente não produziu um modelo de trabalho para o capital do século 21. Para isso, ainda precisamos de Marx ou de seus equivalentes para os dias atuais.
Artigo de David Harvey, disponível em davidharvey.org. Tradução de Inês Castilho para outraspalavras.net, revista por Carlos Santos para esquerda.net.
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Sinto que os argumentos-chave não estão explicados neste texto. Talvez me falte conhecimento....
ResponderExcluir"Se é alta a taxa de retorno sobre o capital que está a ser usado é porque uma parte do capital foi retirado de circulação e, de facto, está em greve." Porque? Como assim?
É a visão dele, acredito que esta retirada de parte do capital de circulação é para que aumente seu valor dentro de uma economia finaceirizada.
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