sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

É DE ESQUERDA MAS TEM IPOD




É recorrente que ouçamos acusações contra pessoas de esquerda que consomem algum artigo ou serviço mais caros: haveria contradição entre ser anti-capitalista e andar de táxi, ter ipod, gostar de Beatles, comer no Outback ou morar na Zona Sul. A primeira coisa que a gente pode sublinhar nessa opinião é o seu essencialismo: haveria nas coisas certas propriedades que lhes incutiriam uma, por assim dizer, identidade capitalista. A gente pode exercitar um desdobramento lógico desse pensamento. Se há coisas essencialmente “capitalistas”, “burguesas” ou de “direita”, deve haver também aquelas que são essencialmente de esquerda e que nos permitiriam devolver a contradição com uma lista que poderia ser gigante: É de direita mas tem férias, décimo terceiro e licença médica; é de direita mas vota; é de direita mas estuda em universidade pública, é de direita mas não trabalha desde os 7 anos de idade etc., etc.. Mas isso seria apenas reproduzir invertidamente a mesma forma tosca. O mais interessante é então perguntar: por que eu consideraria como “burguês” ou “capitalista” aquilo que é, material e concretamente, fruto do trabalho humano? Se a minha crítica de esquerda depõe contra a apropriação que uns poucos fazem sobre os recursos construídos por muitos, por que eu reproduziria e incorporaria no meu discurso essa mesma apropriação que a burguesia realiza na prática? Por que então a legitimidade de certos consumos deveria estar restrita à burguesia ou aos pró-capitalistas?
Parte da acusação do título me parece ter origem implicitamente na noção de superioridade moral e estética que a esquerda conferiria a aspectos da vida proletária. Nisso estariam incluídos desde samba até andar de ônibus e passar fome. Essa apologia da pobreza e das coisas dos pobres foi de fato em parte uma criação discursiva da própria esquerda, mantida por alguns até hoje, e que teve ao longo da história motivações as mais diversas, como uma valorização resistente diante de uma cultura dominante discriminatória ou o simples ressentimento de classe. Mas é um erro supor que isso seja típico ou basilar no pensamento de esquerda ou no pensamento anti-capitalista de forma geral.
Se gastarmos uns 3 ou 4 segundos com as melhores referências da crítica ao capital veremos então que a questão é completamente outra: não a negação, como mau ou estranho, daquilo que foi engendrado pelo desenvolvimento econômico burguês; mas o combate a seu caráter exclusivo e excludente que, todavia, poderia ser revertido em uma distribuição igual, universal e potencializadora dos homens. Ou seja, a ideia de uma glamourização da pobreza faz mais parte de debates laterais, hoje muito inflamados pela falação de direita (Lobão, por exemplo), e não encontra nenhum lugar de relevo na tradição do pensamento teórico de crítica social ou na definição de ser de esquerda, ao contrário do que querem os twitteiros e polemistas de bar ocasionais.
Mas esse nosso interlocutor pode ter outro tipo de questão: como pode alguém ser solidário com os pobres e ele próprio estar em uma posição privilegiada? Denunciar a situação dos sem-teto quando ele próprio tem posses? Sobre isso, é essencial saber primeiramente que a crítica de esquerda (como a marxista, a que me filio) não é uma crítica moral sobre as pessoas, mas fundamentalmente uma crítica sistêmica, estrutural. O projeto do socialismo não seria então um grande Criança Esperança onde cada um se despojaria um pouco do seu egoísmo para que outros tivessem mais, mas uma mudança nas dinâmicas da sociedade que produzem a opressão e a desigualdade. E se há pessoas que gozam e se beneficiam com a ativa exploração e a carência alheias, trata-se de um conjunto de pessoas extremamente reduzido com posições bem especiais em empresas, governos, igrejas e outras entidades. Se há algo de denúncia moral no marxismo, ela não recai sobre o próprio trabalhador (ainda que ele tenha uma casa de praia) mas sobre aqueles que tem as rédeas dessa dinâmica social, ou seja, efetivo poder sobre a constituição da sociedade tal como ela é (cujas propriedades, elas sim, são politicamente relevantes). A “contradição” do Ipod, do laptop, do carro, etc., valeria para algum cristão (saca Jesus Cristo?) mas jamais para algum marxista porque nossa perspectiva não é a elevação moralista do indivíduo, mas as transformações coletivas do que nos determina como sociedade.
Com isso, não pretendo colocar que a questão do consumo é isenta de maiores significados políticos. Muito pelo contrário, me parece que não há mercadoria que não guarde histórias de roubos, de assassinatos, de tortura, de destruição ambiental. A cultura do consumismo em particular, em um momento de escala astronômica e irracional da produção de mercadorias, está no centro da hegemonia burguesa (e o que vale para o Ipod também vale para o Xing Ling da Uruguaina, todos construídos sob a mesma lógica). Tudo isso nos confronta eticamente e nos exige resposta não só como coletividade abstrata mas também como pessoas e indivíduos. Mas esse é um debate que não tem a ver com as tentativas estreitas de desqualificação da esquerda, em especial as ressentidas.
.

Wesley Carvalho é professor e historiador.

2 comentários :

  1. A “contradição” do Ipod, do laptop, do carro, etc., valeria para algum cristão (saca Jesus Cristo?) mas jamais para algum marxista porque nossa perspectiva não é a elevação moralista do indivíduo, mas as transformações coletivas do que nos determina como sociedade " - Wesley Carvalho

    COMENTÁRIO
    Foi aqui justamente o ponto que o marxismo errou. Sem uma elevação moral do indivíduo, as transformações coletivas só podem ser feitas à força. Sem a elevação moral dos indivíduos, que não precisa ser feita apenas pelo cristianismo, você não muda nada. Em 1987, o historiador marxista Pierre Vidal teve que reconhecer, ao ler uma pesquisa sobre o sonho dos operários da Alemanha Oriental de terem o próprio negócio, que o marxismo falhou em não ter pregado uma revolução moral. Os operários comunistas sonhavam em ser capitalistas, sonhavam com o lucro e com a exploração do outro justamente porque lhes faltava a base moral que o marxismo não lhes deu.

    ResponderExcluir