quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

SOBRE A ESQUERDA CAVIAR E OUTRAS ALUCINAÇÕES




“Esquerda-caviar” (*) é nova expressão inventada por gurus da direita conservadora e reacionária. E como muitas expressões levianas, elas se espalham por meio de um bando de seguidores, os quais, sem saber exatamente o que isso significa, reproduzem uma ideia falaciosa: a de que a esquerda tem que ser paupérrima. Mas só para começar a nossa discussão, é bom lembrar que a pobreza é uma invenção do capitalismo.
Eu nunca fui chamada de esquerda-caviar publicamente, mas é apenas uma questão de tempo. Afinal, eu faço coisas terríveis que contradizem minha convicção política socialista, a qual foi apreendida desde a primeira infância quando eu lia O Capital em quadrinhos, Pablo Neruda, Che Guevara. Nesses livros escritos por uma corja de gente que não toma banho, eu nunca aprendi que eu não poderia consumir. Eu apenas aprendi que havia algo errado no mundo: alguns têm muito e outros – a grande maioria – têm muito pouco. Os que têm pouco não possuem instrumentos para reverter esse quadro porque historicamente foram roubados por quem tem muito. Assim, eu, uma pessoa de classe média, tornei-me socialista. Ou quiçá, uma integrante da esquerda caviar.
Na primeira versão deste texto que aqui apresento, este exato paragrafo iniciava-se com uma série de mea-culpa sobre meu background familiar e até meus atos de consumo do dia-a-dia. Também pensei em explicar porque um conhecido meu comunista tem uma caminhonete. Ele tem sido acusado nas redes sociais de esquerda-caviar por ter um adesivo de Che em um carro dos sonhos da direita. Quanta contradição! Comunistas deveriam andar a cavalo! Ainda eu poderia responder a Rodrigo Constantino, que teve a infelicidade de dizer que a deputada Manuela Dávila, uma vez dita comunista, não poderia optar por ser feliz em sua vida conjugal, já que isso significava uma vida liberal burguesa.
Apesar de escrever coisas que configuram uma ignorância tremenda – como no caso da deputada – o guru da Veja, Rodrigo Constantino, não é nada ignorante. Ele certamente sabe que a esquerda pode se casar e ser feliz. Ele é apenas da extrema direita e tem um papel messiânico de espalhar medo e desinformação sobre a esquerda. (Permita-me, por favor, abrir um parêntese: como é interessante usar a expressão ‘messiânico’ para se referir a alguém da direita – esta palavra tão usada para classificar a nós, da esquerda radical e que-deveria-ser-fedorenta). Ainda pior que esse sujeito que intencionalmente joga claro sua posição politica, são aqueles que, sem qualquer conhecimento do que é o socialismo, saem reproduzindo essa falácia nas redes sociais.
A ideia de uma esquerda-caviar é uma falácia. Um argumento que parece lógico e coerente (comunista = pobre), mas que esconde uma profunda enganação. Por isso, qualquer justificativa seria cair nessa rede de ignorância profunda na qual essas pessoas estão enredadas.
Como justificar que o capitalismo é melhor se um socialista também tem pequenos prazeres materiais e simbólicos? Se essa pessoa foi educada que, no socialismo, as pessoas compartilham escovas de dente, como aceitar e justificar que um sujeito da ideologia perigosa tem um carro melhor que o meu? Se o cara tem um carrão, porque ele não fica feliz de ele ser o 1% da população mundial? Para que complicar as coisas e ainda querer mais igualdade? Isso realmente fica fora da cartilha da extrema direita. O mais fácil mesmo é desqualificar os socialistas, como sujeitos contraditórios.
Sinto muito. A esquerda consome e também goza de pequenos prazeres das coisas materiais. Mas existe uma grande diferença entre isso e o acúmulo de propriedade privada. Essa diferença é ética: a não ostentação, o não excesso e a consciência da origem dos produtos e das questões injustas de propriedade intelectual. Difícil definir o limite dessa ética? Sim, muito difícil, ainda que a própria acepção filosófica da palavra ética já resolva essa dificuldade.
Tempos atrás eu vi algo no Facebook que dizia “socialismo não é ser contra i-phone, mas a favor de que todos tenham um i-phone”. Eu discordo. Um produto de uma empresa que explora o trabalho escravo, entre outros problemas, não é o melhor exemplo do que significa socialismo. Mas a ideia que está por trás dessa frase está correta. Socialismo é uma sociedade democrática e mais igualitária em que todos possam ter as mesmas condições de partida. E nessa sociedade as pessoas compram o que quiserem – até mesmo um i-phone, se for o caso. Socialismo é a luta pela participação política de todos os sujeitos na sociedade e contra o monopólio das grandes corporações.
Desculpa-me, direita, mas em minhas três décadas de leituras socialistas, eu nunca encontrei aquela parte do caviar. Nunca ninguém escreveu que as pessoas devem ser sujas, não casar e fazer voto de pobreza. Mas na esquerda, as pessoas podem ser sujas, limpas, gordas, magras, homossexuais, heterossexuais. Elas podem gostar de carro ou de livros; de viagens ou de cafeterias. Em suma, elas podem ser livres.
Desculpa-me, direita, por me apropriar dessa palavra que vocês adoram na teoria, mas na prática tem se demonstrado bem mais complicado do que parece. Para a direita, a expressão liberdade tem sido usada apenas para o mercado e seus impostos. Afinal, de resto vejo uma grande prisão a valores conservadores e padrões intangíveis que causam sofrimento e violência de todas as ordens.
A ideia socialista de igualdade e liberdade é ameaçadora porque fere a distinção social brasileira, fonte de grande prazer de poucos. Mas os tempos estão mudando. E todos nós agora queremos caviar. E mais: entendemos que a ausência de caviar é apenas uma questão política e não de mérito.
Nesse contexto ameaçador, é preciso requentar a mitologia anti-comunista, reproduzida sem qualquer conexão com a realidade. Comer criancinha não cola mais. Colava durante a ditadura militar, quando jovens “fanáticos” davam a sua vida pela liberdade. Aquelas meninos barbudos e meninas de sandália hippie tinham apelo social. Mas perderam seu apelo após a hegemonia do american way of life dos anos 1990. Os barbudos se transforam num ícone da derrota e do passado para a direita bem enfeitada das colunas sociais. Mas as coisas mudaram, pois os padrões hegemônicos tem se mostrado um modelo falho, raso e insustentável.
O ano de 2013 se mostrou um marco de indignações e revoltas. 2014 promete muito mais. Portanto, como em 1964, é preciso desesperadamente recriar mitos para proteger o castelo. Enquanto milhões de pessoas irão para as ruas no ano da “Copa para todos” (heim?), só resta à direita torcer para que um comuna tome champanhe e poste no facebook.
Ah, para finalizar, (1) eu nunca comi caviar, mas adoraria. (2) que ironia do destino ter uma esquerda caviar e uma direita coxinha

Rosana Pinheiro Machado é cientista social e antropóloga. Professora de Antropologia do Desenvolvimento da Universidade de Oxford.

5 comentários :

  1. Parabéns!! Que texto sensacional! Coloca as coisas numa clareza absurda! Obrigado!!!

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  2. Também gostei do texto, crítico mas sem radicalismo.
    Mauro

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  3. Muito bom o conteudo do post, muito bem explicado. Amei o blog!!

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  4. parabéns. acompanho postagens no seu blog, gosto, mas essa está excepcional.

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  5. Obrigado a todos pelas palavras de incentivo.
    Valeu muito.

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